2005-02-03

 

BEM VINDOS TODOS AO SALÃO DE FESTAS (III)

Cecília e António formavam um casal muito gabado pelos amigos. Apresentavam-se sempre irrepreensivelmente vestidos, dir-se-ia que a escolha da indumentária ocuparia uma boa parte da manhã. Era, aliás, na imagem (a sua) que investiam uma grande fatia de tempo e do pecúlio que esforçadamente juntavam à força de muita ginástica, num equilibrio precário de empréstimos bancários para a casa, carro e mobiliário.
Faziam parte desse grupo indefinido de funcionários públicos (ele) e empregadas de escritório (ela). Refugiavam-se em descrições exageradamente vagas das suas responsabilidades profissionais quando lhes perguntavam a sua ocupação.
António tinha especial orgulho na sua unha do dedo mindinho direito que foi deixando crescer e que tratava com desvelo, quase carinho. Chamava-lhe, com ternura, a “minha garra”, não perdendo a oportunidade de a exibir sempre que tomava o café de dedinho espetado apontando o infinito. Era sempre com a unhaca que indicava as direcções ou qualquer elemento importante num documento.
Ao fim-de-semana, Cecília e António enfiavam-se dentro dos fatos de treino e ensaiavam joggings mentais pelas tardes arrastadas dos centros comerciais.
As leituras ocupavam-lhes pouco os dias. Cecília tinha na compra da Caras o seu vício semanal, correndo para as bancas no dia de saida da revista que via com apreciável gosto. António, “perdia a cabeça” de quando em vez, na compra apressada do jornal “A Bola” para actualização de informação, sempre útil, na conversa lá no escritório.
Cecília não perdia uma oportunidade para falar da sua “empregada”, uma “doutora da Ucrânia” como gostava de repetir. Deixava sempre uma nota de comiseração com “essa pobre gente, que não tem a nossa riqueza”, achava estranho que a “sua empregada” teimasse enviar para casa uma boa parte do seu salário para que o filho pudesse estudar, “logo eles que gastam as pestanas para nada, coitadinhos”. Ela e o “seu” António não precisaram dessas perdas de tempo, estudaram ambos o “suficiente”. Para quê (perguntavam amiúde) gastos com estudos, estavam bem assim, não era preciso mais. Nunca tinham sentido necessidade de saber mais.
Aliás, o António – “benza-o Deus” - era o sábio no seu grupo de amigos. Tinha opiniões muito seguras e não se recordava de ter algum dia duvidado fosse do que fosse. Tinha esse dom, era capaz de, num ápice, perceber a questão (qualquer questão) e compôr, de imediato, o seu juízo. Deixava sempre bem claro que se tratava de algo inato, pois ele não precisou de “estudar”, tinha sido bafejado com esta graça – há gente assim.
Gostava de iniciar as frases opinativas com um ameaçador “ouça bem o que lhe digo” descobrindo conspirações e provas “provadinhas” do que dizia. Opinava sobre tudo. A sua “esposa” inchava de orgulho quando o ouvia dissertar, não conseguia impedir o comentário: “o meu Tó parece um doutor” colocando a mãozinha direita, em concha, junto ao peito.
O António era verdadeiramente um literato. Lá ia explicando tudo, para que “póssamos” saber o que se passa verdadeiramente, isso porque “eles hadem” ver que “com nós” tudo se sabe “derivado” aos noticiários da televisão.
A televisão ocupava, de resto, um espaço importante na suas vidas. Tanto mais agora que um belo plasma se destacava na sala. Marcavam o ritmo do seu serão pelos programas de “bom humor” que gostavam de ver, hesitando entre os “malucos do riso” e “os batanetes”.
O casal tinha descoberto, recentemente, numa reportagem de “fundo” - lida numa das revistas de sala de espera de dentista - que a solução para esta “desgraça da política” era termos um rei. O António era mesmo já um convicto monárquico. Achava que deveria poder “eleger o melhor dos candidatos a rei” como referia com extremada convicção.
Ansiavam poder partilhar estas ideias nos próximos dias de descanso no Algarve. Queriam, aliás, desforrar-se das férias menos boas deste ano “valha-nos Deus”. Ainda não tinham esquecido a maçada que foi “empandeirar” o Farug. “Raios partam a nossa ideia de trazer o cão cá para casa” explodia de raiva o António quando se lembrava do dia em que compraram o cachorro numa das suas frequentes visitas ao centro comercial. Não resistiram ao cachorrinho pequenino “tão lindo” que os olhava, com ternura, pelo vidro da montra. Foi um impulso. Nesse dia de saldos, de tantas compras, enfiaram no saco o Farug. O cachorro rapidamente se transformou em cão e grande, “o raça do cão não parava de crescer”, logo quando se preparavam para as sagradas férias no Algarve. Foi Cecília que se lembrou deixar o cão à beira da estrada, “para ficar mais livre”. Nesse dia regressaram a casa satisfeitos pela decisão que tomaram e que “era claramente o melhor para o Farug”.
A Cecília e o António já tomaram uma resolução quanto ao seu voto. Acham que os "intelectuais de esquerda" estão a perseguir o senhor primeiro-ministro (um homem tão inteligente, uma vitima nas mãos desses malandros) e farão questão de “deitar” por Santana Lopes no dia 20.
-“Essa é que é essa” como gosta de dizer Cecília.

(continua)

Comentários:
Estes "Tonhos" e estas "Cilinhas", que com muita persistência tentam encaixar-se no "figurino", vivem como pés 38 metidos em sapatos 35 - vão andando, mas sempre encolhidos e doridos (rindo, só de imaginar as figuras... o retrato está óptimo!).
Abraço,
DespenteadaMental
 
Pois é Cecília; claro que sim,António! Mas "atão" nós também temos "qu'star" nessa?!
 
Caro Luís, estes posts parecem tirados de um romance "neo-neo-realista". Ironia, olho clínico, olho crítico, escrita correcta, mensagem passada, mensagem compreendida. Gosto muito desta "saga" do "Salão de Baile". Força!
 
Li e reli este seu texto e devo dizer que o acho um "brinco" há análise socilógica do pensamento típicamente português. Os meus sinceros parabéns. Para além do romance, uma excelente análise...
 
Conheço ou conheci, muitos Antónios e Cecílias, ao longo da minha vida.Excelente visão de uma parte da sociedade portuguesa. Infelizmente, bastante grande.
Parabéns!
 
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