2005-05-03

 

UM SERÃO PORTUGUÊS

O homem surgiu no ecrã envergando um casaco amarrotado em tons azul bebé. Ligeiramente curvado (acusando o peso da responsabilidade) acompanhou o repórter em visita guiada ao imenso estaleiro de obras inacabadas em que se transformou a capital. Assegurou que sim, que estima muito o senhor primeiro-ministro, é seu amigo, conhece-lhe a inteligência, sabe-o muito esperto, “sabe-a toda” diria o telespectador, acompanhando em casa o espectáculo televisivo, chamando já a “esposa”, gritando: “Maria, anda cá ver este gajo, olha o pintas de azulinho” e a Maria ainda esfregando as mãos ao pano providencial que a acompanha quase como se fosse um apêndice, e a Maria de olhinho regalado ensaiando um gesto carinhoso, cuidando uma atenção: “coitado do senhor, vê bem como anda ali nas obras de casaco amarrotado, coitadinho”.
E ele que continua, garante que vai mudar de vida, enfim, as coisas são o que são, é natural que um primeiro-ministro conheça muita gente, “em África, na Europa”, por aí, e que conhecendo tanta gente, tão importante, possa ser muito útil a uma empresa financeira.
E o marido que lhe diz: “ó filha, mas tu não vês que o pintas anda por aí?”, e ela que responde: “coitadinho, andando por aí, aos caídos, sem um tecto” e uma lágrima emotiva que desperta, que descobre o cantinho do olho, que ela limpa num gesto comovido.
E ele que diz - pela primeira vez, observa o repórter – que talvez não se candidate a Presidente, não que lhe falte o perfil, nada disso, apenas porque - está visto - aquela gente nova lá no partido não gosta muito dele e isso, sabemo-lo todos, chateia, é desagradável.
E a esposa: “custa-me muito vêr o senhor que foi tão importante a sofrer tanto, ai Jesus, que vida a dele, valha-me Deus”.
E ele, esfregando as mãozinhas explicando, contando, que voltará a advogar, a dar aulas, por aí.
E o marido incomodado, “raios partam esta treta, pá”, amarrotando o jornal, verberando esse mafarrico vivo, esse invejoso que não tem vergonha, essa besta doida, esse Couceiro, que julga ser ainda possivel “limpar” o campeonato ao seu Glorioso, camandro!

Comentários:
E quando o "pintas que anda por aí" dá uma entrevista em que só fala do ordenado e da pensão de reforma (dele, claro), sendo entrevistado dentro de uma casa sem mobília, e tu tens a sensação de que o "gajo" veio tratar da "vidinha" dele, enquanto lixava a dos outros... Nesse momento amarrotas o jornal onde estão as fuças do gajo que "anda por aí". Um grande abraço.
 
Foi um mero momento confrangedor. Aqui apresentado no plano do país real.

Vitor Candido José
 
Pois é, caro Luis.
Ainda vai havendo para aí uns quantos colos disponíveis e, para isso, o artista parece que tem jeito!
Este seu serão...
 
Camandro!
Dizes bem!
 
o Pais é esse mesmo, é o unoico pais, onde um mero jogo da bola...têm o destaque de uma final da taça dos campeões(quanto custou aquele show off todo no algarve?).
onde um presidente pode dizer... que a grande aquisição foi o director executivo da liga....onde sei lá o quê...falta depois sala de aulas para os miudos terem aulas suplementares de matemática.
 
O pais do fado da saudade e do futebol! É o nosso pais pequenino.
 
Tudo isto remete para o problema da dignidade e da credibilidade em política. Estamos no País do vale tudo e não há maneira de dar volta à situação; pelo contrário, estas personagens em vez de serem remetidas para o limbo do esquecimento (sanção seguramente eficaz) são premiadas com horas de publicidade grátis. Assim, nao!
 
Como já nos habituou, um retrato impiedoso, servido magnificamente.
Foi um momento televisivo dramático, pela miséria moral da personagem. Pensar que tivemos aquele «príncipe azul» a governar este país...
 
Foi triste , mas sempre terá direito ao Rendimento Social Garantido que sempre negou a quem dele precisava!
 
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