2006-01-10

 

ESTÓRIAS DO QUOTIDIANO (VI)

Sentado, com ar proprietário, na banca dos jornais, parece ufano - um capitão do comércio poderíamos dizer, fôssemos dados a alegorias improváveis. Ali estava, todos os dias, exercitando uma implacável e proveitosa técnica disfarçada de bonomia e desatenção.
Se tivesse o hábito, perigoso, de partilhar o segredo, o seu segredo, diria que “topava a pinta” à distância. A coisa fazia-se com muito saber e requinte: por cada cliente que se aproximava construía o seu “perfil” calculando mentalmente a dimensão do “engano” nas contas, no troco daquele incauto comprador. Aos mais apressados, devolvia a demasia com uma desusada quantidade de moedas, disfarçando a ausência de um ou dois euros, subitamente adicionados ao ganho da venda. Gostava particularmente da habilidade que considerava uma sua especialidade, enquanto entregava os jornais e revistas, desdobrava-se em pormenores: que isto está mau, que o negócio, senhores, agoniza, ele mesmo aguardava apenas o dia em que pudesse regressar à terrinha, que Deus a tem, e outras considerações de reconhecida acutilância, assegurando-se que o troco minguado fosse cautelosamente guardado no bolso do cliente ocasional. Em todo o caso, a técnica mais apetecida, aquela que lhe enchia as medidas, era enfrentar o freguês coca-bichinho entregar-lhe o troco olhos nos olhos, contando moeda a moeda, sem fraquejar, remexendo orgulhoso no final as moedas sobrantes do logro profissional.
Aos mal encarados, pelo sim, pelo não, evitava malabarismos com as contas. Cautelas, já se vê.
Não se diga, contudo, que não há ética neste negócio de tantas artes, pois que estaríamos enganados e ofendendo tão distinto alquimista da multiplicação, ou da subtracção dependendo da perspectiva. Bem vistas as coisas, há um código deontológico antigo, ancestral, que impede malabarismos (frequentes) com clientes habituais, apenas uma ou outra vez, consoante as simpatias e a prática.
Mas a talentosa diferença entre profissionais do mesmo ofício burlão está nas desculpas. Haja alguém mais atento, mais certificador das contas, e logo ali se desenrola uma vistosa cena, o ar “tu queres ver que me enganei?”, a escolha da frase do dia entre a ementa arrumadinha de expressões carinhosas: ai a minha cabeça, valha-me Deus, não faça caso amigo, embrulhadas num sorriso cúmplice.
Vários anos de trabalhos e contas permitiram-lhe fazer crescer a actividade comercial multiplicando os locais de negócio, conquistando uma confortável e lucrativa cadeia de lojas.
Deixemo-lo sentado, aguardando a próxima vitima, enquanto calcula mentalmente os trocos em falta para trocar de carro, um humilde BMW da nova geração.

Comentários:
"Não faça caso,amigo"!
Foi exactamente isso que o "gajo" me disse há dias...
Excelente retrato!
 
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