2004-11-13

 

UMA VÉNIA À ESCRITA


António Lobo Antunes comemora 25 anos de escrita que merecem homenagem.
Actualmente, o autor reconhece que está mais calmo e tolerante com jornalistas menos esclarecidos, nas suas muitas entrevistas. Admito que seja difícil. Recordo uma entrevista publicada há alguns anos pelo "Público", não retive o nome da entrevistadora, apenas lembro que tentou ser engraçadinha (talvez uma dessas meninas cujo alcance literário se esgota nos rótulos das garrafas) enfim, a menina quis fazer uma graça, arrancando a sessão com uma pergunta solta e muito fresca (cito de memória) "diria que o Lobo Antunes é o Herman José da literatura, não lhe parece?". Está bom de vêr que a resposta, assim como toda a entrevista, foi de arrasar, tornando-se a dado passo um "diálogo" sem nexo, em que a "menina" se perdeu numa aventura bem mais complexa do que esperava.
Se recordo este episódio é por que, em certo sentido, acabou por ser um exemplo (ainda que involuntário) de "non sense" com alguns momentos hilariantes.
Aliás, tenho encontrado nos livros de Lobo Antunes alguns exemplos do mais sofisticado humor escrito em lingua portuguesa. Não resisto a deixar aqui, com a devida vénia, apenas dois pequenos exemplos retirados daquele que considero, ainda, um dos seus mais brilhantes romances: Fado Alexandrino.
"O incomparável equilibrista sueco Charles pinchou aos saltinhos no escuro, apertado num baby-grow amarelo, reluzente de lantejoulas e vidrilhos. Era baixo, moreno, de patilhas, tipicamente nórdico de Marvila, e quando a certa altura se enganou escapou-se-lhe da ramagem preta do bigode um impetuoso Foda-se de viking. A bela Janete, minúscula e rabuda, de longos cabelos pontuados de palhetas a encarapinharem-se em desordem nas espáduas, rodopiava em torno do artista o qual se multiplicava em pinos lamentáveis, sublinhados pela orquestra de compassos trágicos de tragédia".
(...) "À Mademe Simone seguiu-se o genial ilusionista búlgaro Mikael Mikaelov, que despejava jarros de leite em cones de papel de jornal que se transformavam na bandeira portuguesa e solicitava a colaboração do público com o sotaque do Porto típico dos Eslavos, as irmãs Smith, da Califórnia, numa gentil cedência do casino de Nova Iorque, em exercícios de forças combinadas (uma delas, de resto, era a lindíssima janete, a acompanhante do equilibrista sueco de há pouco) desfazendo-se em cambalhotas e mortais, Marina Madragoa, a mais recente descoberta do fado, acompanhada do seu conjunto privativo (o torcionário do piano e a lombriga do saxofone, que mudaram de casaco para a circunstãncia) e após alguns minutos de nula expectativa e absoluto alheamento (preparai-vos, damas e cavalheiros, para o número sem par que se vos reserva), a campeã do strip-tease Melissa, inveja das mais célebres estrelas do cinema italiano, e singularmente parecida com a deusa do Fado, com a diferença de se manter em silêncio ao passo que a cantora, descomposta pela inspiração lírica, urrava pelo gregório ao microfone, como as sereias dos bombeiros num terramoto de nádegas."

Comentários: Enviar um comentário

<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?