2005-04-29

 

CHINA - POTÊNCIA POLÍTICA

O Financial Times publicou, na sua edição de ontem, uma intrigante fotografia: ocupando metade da página surge um enorme empilhador com pneus de ... madeira. Parecendo um pequeno “fait-divers” é mais uma evidente prova do poder crescente de um país.
Muito simplesmente, a China tem registado uma impressionante procura de matérias-primas, provocando um excessivo desequilíbrio no mercado mundial.
O movimento tem sido de tal forma avassalador e inesperado que nao foi, sequer, acautelada a existência de stocks mundiais de pneus, por exemplo.
Perante esta míngua, marcas como a Volvo ou Caterpillar estão a ser forçadas a entregar os seus veículos industriais com rodas de madeira prometendo a entrega dos pneus mais tarde ou aconselhando os seus clientes a procurar, eles próprios, os necessários pneumáticos.
É apenas um pequeno exemplo. O mesmo se passa, neste exacto momento, com o petróleo (registando um preço em alta há meses e que assim continuará), com os metais e quase todas as matérias-primas.
O gigante acordou.
Ninguém tenha dúvidas: a este crescente poder económico, seguir-se-á um poder político dominador e imperial (veja-se a recente “crise dos livros escolares” com o Japão e respectivo pedido de desculpas nipónico).
Preocupante, muito preocupante, é pressentir este poder aumentando desta forma, numa ditadura, entregue a gente que desconhece, totalmente, os valores democráticos.

2005-04-26

 

E DEPOIS DO ADEUS (I)

Quase todas as noites acorda ao som daquela memória estridente da chapa a bater na mesa. Dir-se-ia que a tortura maior não foi ter estado em pé horas infinitas na estátua, não foi ter estado preso tantas vezes sem razão, não foi, sequer, ter estado acordado dias a fio. A tortura maior ficou-lhe gravada indelevelmente, aparece-lhe em forma de pesadelo, encarrega-se de o fazer recordar os tempos menores de um país dobrado, em respeitinho abjecto.
E logo ele que repetia tantas vezes que a sua política era o trabalho, logo ele que afirmava convictamente que essas coisas da ditadura, essas coisas das perseguições, seriam invenções da malta do reviralho - houvesse decoro, dedicação ao trabalho e à nação e certamente ninguém seria incomodado.
Ainda hoje desconhece quem teria sido o denunciador e porquê. Não esquece aquele dia, seriam 6 horas da manhã (mais tarde compreenderia, dolorosamente, que esta era a hora oficial para as “visitas”), ainda estremunhado abriu a porta à violência, ao descontrolo. Acordou mais tarde já no calabouço, já na mesinha com a luz forte apontada aos olhos, a voz que gritava, que o acusava de graves conspirações, que o envolvia em atentados à segurança do Estado, que garantia que os “comunas” naquela sala não saíam vivos. Julgando estar a viver um pesadelo, ainda explicou, ainda esclareceu. Pouco importava, cedo percebeu que ali, estava para sofrer. Tinha o destino traçado por uma qualquer demente razão. Estava marcado para experimentar o sabor amargo da ditadura.
Compreendeu então o logro em que tinha vivido, em que muitos teimavam viver. Assim, num ápice, pela denúncia inventada de um qualquer esbirro, toda a sua vida tinha sido virada do avesso.
Compreendeu que não podia mais correr à margem, não podia mais fechar os olhos, logo agora que lhos abriram, que o atiraram para o outro lado.
Ainda lhe custa lembrar como penou, como foi difícil explicar o lodo, a escuridão. Ainda lhe custa lembrar os outros virando a cara, não querendo ver, calando, aceitando, acatando. Ainda hoje lhe custa lembrar as vezes sem conta que regressou àquele edifício, as vezes sem conta do martirio, da violência.
Estava longe e escondido no dia maior, só soube das novas dois dias depois. Não se lembra de maior felicidade, subitamente a liberdade, subitamente uma janela aberta, a brisa do mar, sentida a plenos pulmões por um país diferente.
Todos os anos celebra o dia da verdade.
Secretamente, arrepia-se sempre que recorda o lado mais obscuro, mais triste, mais ignorante do país que tanto ama. Secretamente, arrepia-se sempre que se interroga por onde andará essa gente, essa tendência para aceitar, para não questionar, para não contestar.
Secretamente, deseja que o país, o seu país, seja uma nação outra.
Ali vai, orgulhoso, cravo na lapela, desfilando anonimamente pela Avenida da Liberdade.

2005-04-25

 

25 DE ABRIL: SEMPRE


Ilustração de Fernando Brito

2005-04-22

 

PARECE QUE É BRUXO

"A minha orientação de vida é abrandar o ritmo de vida política que tenho tido"
Pedro Santana Lopes citado na revista Visão

2005-04-19

 

MALES DO CORPORATIVISMO

O jornal Público noticia, na sua edição de hoje, que o Ministério da Saúde pondera a colocação de anúncios internacionais para a contratação de médicos interessados em vir trabalhar para Portugal. Ainda no mesmo jornal, é referido que existem cerca de 3150 médicos estrangeiros a desenvolver a sua actividade no nosso país.
Conhece-se a situação a que chegámos em Portugal. É já evidente a gritante falta de clínicos.
Durante anos os médicos ditaram a sua força, preocuparam-se em manter o seu poder, reduzindo ao absurdo o número de vagas disponíveis nos cursos de medicina. Sabiam que esse controlo garantia uma capacidade absurda de reivindicação, impondo uma inaceitável distorção da normalidade. Os sucessivos governos do Portugal democrático não foram capazes de fazer valer o interesse público soçobrando ante a classe médica.
No limite perdemos todos, incluindo os próprios médicos.
Bem pode o senhor bastonário queixar-se da falta de qualidade e preparação dos seus colegas estrangeiros (afirmando serem recém licenciados na sua grande maioria), esse desabafo soa a patético, perante as responsabilidades que os médicos, por uma vez, deveriam assumir.
O resultado desta cegueira está aí à vista de todos.
A cedência aos interesses corporativos, resulta sempre no prejuízo da esmagadora maioria da população.

2005-04-17

 

CONHECIMENTO DO INFERNO (V)

Tinha passado a manhã olhando as estantes com os seus livros. Detivera-se na leitura daqueles tomos com as ideias que em tempos o haviam conquistado. Quase a medo releu os seus próprios comentários escritos em estilo deslumbrado. Parecia-lhe tão estranho rever-se naquela caligrafia.
Agarrado às notas vindas de um tempo outro, foi descobrindo os contornos exactos da sua ilusão. Dizia então conhecer as regras da Economia. Não tinha dúvidas, sabia que o Estado era uma criação demoníaca e inutil, divertia-se com os jogos de palavras. Sentia tão seguras as suas convicções e tão fortes as suas certezas que gostava de discutir a privatização da sociedade, assim mesmo, sem excepções. A pobreza, defendia, não existia como tal, apenas a demonstração da preguiça, da ausência de vontade. Naqueles dias gabava-se de não ter, jamais, conhecido um argumento capaz de alterar as suas ideias.
O sucesso profissional alimentava a redoma que tinha desenhado para si, numa abstracção de tudo à sua volta.
Sabia hoje que tinha de guardar a fera selvagem em que a sua memória se tinha transformado. Todas aquelas recordações sacudiam-no violentamente, traziam a frieza da lâmina, secavam-no por dentro.
Afastava com firmeza aquela torrente de recordações, não podia deixar que o desalento se instalasse. Tinha bem presente as indicações do médico, a bomba-relógio que o consumia podia facilmente descontrolar-se sem o apertado domínio de uma alma desperta e combativa.
Aquela era uma guerra que não queria, nem podia perder.
Restava-lhe a esperança de encontrar uma solução para o enigma em que se tinha transformado a sua vida, numa espécie de equação com tantas variáveis e incógnitas que subitamente não aceita uma fórmula resolvente.
E os cálculos, as contas, bem que o consumiam. Conhece agora os limites da reduzida receita familiar, apertado na subtracção do custo brutal dos seus tratamentos, agora que não pode mais trabalhar e não por preguiça, e não por falta de vontade.
Pensava em tudo isto no exacto momento em que se prepara para vestir a sua camisola branca com as palavras de ordem que ensaiara na véspera com os colegas: “não aos abonos de miséria”. Está já a ser revistado pelo agente de autoridade, responsável zeloso pela segurança do hemiciclo. Ali participará na manifestação silenciosa. Ali estará durante os trabalhos vespertinos da Assembleia.
Será tomado pela vontade de gritar a todos que conhece os meses de 10 dias, que sabe bem a dor de ter um prato de esparguete para almoço e jantar de toda a familia. Gritar que conhece casos desesperados, gritar que existem 2 milhões como ele, gritar que há 300.000 pessoas com fome, gritar que não quer viver num país que desconhece o significado da palavra solidariedade. Dizer a todos como é ténue a linha que separa o orgulho da vergonha. Fazer ver como se pode abrir tão facilmente um alçapão debaixo dos pés.
Acabará por silenciar a vontade de partilhar a sua miséria, acabará por impedir-se de contar o seu inferno. Sabe bem que já ganhou invisibilidade, sabe bem que a sua é já uma história impossivel, sabe bem que traz agarrada à pele a vida que ninguém quer ver.
Sabe bem, já foi assim.

2005-04-16

 

PEQUENEZ DESGRAÇADA

O que impressiona neste lamentável processo “apito dourado” é a confrangedora pequenez. É tudo tão desgraçadamente rasteiro, tão medíocre.
Já não é a honra que é comprada (não se compra o que não existe), mas a responsabilidade pelo cumprimento de uma obrigação que é trocada por um simples prato de lentilhas, no aviltante ambiente de primarismo à solta.
Exiba-se uns trocos, aproveite-se o sotaque cantado da Lingua em concupiscentes convites, ofereça-se uma refeição e ter-se-á de bandeja a velhacaria manhosa, a miséria da total ausência de principios na mais importante manifestação desportiva em Portugal.
Observamos ali o cruel retrato de uma parte da nossa sociedade. Pequena, primária, abjecta, subserviente, incapaz, acéfala. Desalentadora.

2005-04-14

 

A LEVEZA DO SER

Parece que Santana não será candidato à sua candidatura.
No seu estilo "digo, mas não digo", o presidente da Câmara de Lisboa, Pedro Santana Lopes, assegurou hoje que não entrará «em qualquer disputa» para a candidatura à autarquia. Na sua opinião, compete à nova direcção do PSD a escolha do candidato.
Não há aqui nada de concreto. Não afasta a hipótese, aguarda que não tenha de se envolver "em qualquer disputa", ou seja, aguarda que o convidem, gentilmente, para uma candidaturazinha.
Tanta candura, tanta tonteria, trouxe-me à memória uma extraordinária entrevista radiofónica, ocorrida há um bom par de anos. O locutor, exibindo o orgulho pela presença de um cançonetista destacado, foi partilhando com os seus ouvintes uma rara sabedoria em conversa de elevado teor intelectual, já no final a pergunta denotando um acompanhamento das novas tecnologias, da modernidade: "e para quando o (cançonetista) na internet?" A resposta, lesta: "quando ela me convidar..."
Algo me diz que Santana Lopes vai ficar a aguardar o mesmo convite.

2005-04-11

 

CONHECIMENTO DO INFERNO (IV)

Naquele dia, estranhamente, não cumpriu o seu ritual da manhã. Por uma vez, decidiu não procurar na janela a imagem percebida do dia lá fora. Talvez por adivinhar na claridade que iluminava o quarto, o anúncio de um dia radioso, aqueles que os locutores radiofónicos tanto gostavam de dizer convidativos para um passeio ou uma ida à praia.
Talvez o dia fosse mais penoso, cumpria-se um aniversário. Há seis anos, que aquela cama o prendia, há seis anos que o seu horizonte se limitava àquele quarto, há seis anos que a sua liberdade se jogava somente no pensamento, cansado de viagens imaginadas, de sonhos alados, proibidos pela dura realidade.
Tinha já dificuldade em recordar a sua vida antes daquele acidente.
Tantas vezes se tinha queixado da falta de tempo, da ausência de oportunidade para “ouvir a sua voz interior” como gostava de dizer, repetindo a frase lida num desses livros de cordel. Estranha ironia, pensava agora, já tão farto de ouvir a sua insuportável voz interior, tão farto dos tempos infinitos de conversa intíma consigo próprio.
Ali estava, arrastando a sua existência em dias dormentes.
Parecia-lhe inverosímil que já tivesse alimentado tantas esperanças, tantos projectos de vida. Parecia-lhe absurdo que há exactamente seis anos fosse apontado como uma séria opção para a administração da empresa a que dedicava o melhor do seu tempo. Parecia-lhe inacreditável que há seis anos ouvisse com frequência que tinha a vida toda à sua frente e um futuro brilhante. Como se a vida não fosse uma construção de areia, uma soma de ilusões, uma sucessão improvável de hipóteses.
Talvez hoje receba a visita de alguma senhora, daquelas vestidas com uma bata amarela - voluntárias, parecia-lhe. Afinal, as suas únicas companhias agora que os pais já tinham partido. Os muitos amigos foram perdendo o hábito de tomar o caminho do Lar onde encontrou o seu lar. Desculpava-os com o tempo, que sabemo-lo bem, é escasso. O mesmo tempo que vai apagando os afectos, impondo o esquecimento.
Já tinha perdido a sensação de tristeza, a melancolia quando se torna crónica perde a densidade, não se dá por ela, instala-se, domina, não deixa espaço para outro sentimento.
A recordação difusa daquele dia chegava já sem emoção, sem raiva, os minutos que lhe roubaram uma vida, que lhe emprestaram uma existência penosa. Aquela estúpida ilusão de imortalidade, conquistada à força de repetidos exercícios de condução no limite, empurrou-o para aquele quarto, atirou-o pela ravina dentro da amálgama de ferros contorcidos que resultaria do descontrolo eufórico do volante.
Sentia o pensamento definhar, enclausurado num corpo tolhido, espécie de cápsula doentia da sua solitária prisão. Não havia mais sofrimento possivel. Ali preso à cama, num desespero silencioso, tinha adquirido o conhecimento do inferno.

 

POPULISMO

Quem tivesse dúvidas acerca da metamorfose do PSD, abraçando o populismo, percebeu este fim-de-semana que os 44% de Luís Filipe Menezes não são um epifenómeno e condicionarão qualquer estratégia.
Lamentavelmente, os sociais-democratas decidiram trilhar um caminho indesejável de que se arrependerão. Não se constrói uma alternativa com estas bases.
Para se compreender melhor o que se está a passar com o PSD vale a pena ler este relato magistral no LaPipe.

2005-04-10

 

UMA QUESTÃO DE ESCOLHA

A edição de Abril da Harvard Business Review publica uma análise particularmente reveladora da economia mundial. Os autores do estudo investigaram, detalhadamente, a riqueza dos paises entre 1980 e 2000. Verificaram uma clara divisão entre três níveis distintos. Cerca de 20% da população mundial vive com um rendimento per capita superior a 23.000 dólares, outros 20% registam rendimentos médios de 10.000 dólares, enquanto que os restantes 60% subsistem com menos de 2.500 dólares. Como resultado da chamada “globalização” nas duas décadas entre 1980 e 2000 os mais ricos registaram um extraordinário crescimento da sua riqueza. Simultaneamente, as nações mais desfavorecidas aumentaram o seu rendimento, ainda que de uma forma modesta. Contudo, a riqueza disponível nos países médios (onde Portugal está incluído) estagnou ou diminuiu. As nações mais ricas, com uma economia apoiada na tecnologia e inovação, não foram afectadas pelo crescimento da China e da India, ao passo que os países incapazes de modernizar a sua economia convivem mal com o surgimento dos colossos orientais onde se concentra 40% da população mundial.
Portugal vive, desgraçadamente, neste último grupo. Durante anos, muitos patrões defenderam e procuraram um proteccionismo que os defendesse das suas ineficiências e incapacidades. Viram nos subsídios uma forma encapotada para essa defesa. Não modernizaram, não investiram, não se prepararam. O poder político foi fechando os olhos a este regabofe, traduzindo a sua total incapacidade para inverter uma situação perversa num país que publicamente clama pela liberdade criadora da iniciativa privada e que em privado exige a protecção do Estado. Os nossos compatriotras garantiram, entretanto, que a tradição do divórcio com o saber, o estudo e a vontade de aprender, se mantivesse cruelmente actual. Deixámo-nos ficar na (aparentemente) cómoda posição de quem não muda, deixámo-nos fragilizar ao ponto de sofrermos com o surgimento de paises cuja indústria tem como argumento principal a mão-de-obra barata.
É deste caldo que nasce o atraso económico, é deste caldo que nasce o desemprego. Lamentavelmente, este vai crescer nos próximos tempos em Portugal. Esta chaga trará consigo dramas pessoais terriveis. Procuraremos noutros a causa para um problema que não fomos capazes de resolver ou atenuar. Houve quem o soubesse fazer.
Não tenhamos ilusões, são dolorosos os dias que se aproximam. Não é mais possível manter privilégios absurdos, não é mais suportável conviver com o desperdício, ignorância, corporativismo, corrupção, fuga pornográfica aos impostos. Não é mais aceitável a ausência de uma moralização. Não é mais contornável a aplicação de mudanças penosas e inevitáveis doa a quem doer. Por uma razão muito simples, ou mudamos ou definhamos alegremente como país. É uma questão de escolha.

2005-04-07

 

UM “MOURINHO” PECHISBEQUE POPULAR VIRTUAL

O DN conta-nos hoje mais uma originalidade do PP. A coisa mereceria pouca atenção, não fosse o facto de se aplicar aqui a táctica de Mourinho (em versão pechisbeque).
Vejamos. O senhor Nuno Melo (consta que deputado e aparentemente líder da bancada popular) entendeu anunciar ao país que haverá por lá uma moção prestes a ser apresentada, garantiu que um putativo candidato com "sentido de Estado, percurso profissional e político, reconhecimento público, serviço prestado ao partido, capacidade e vontade de liderança" está na calha, preparando-se psicológicamente para a (re)entrada em cena.
Evidentemente este “rosto” de que fala o senhor Melo é Telmo Correia. Mas o “líder”, o verdadeiro “líder”, esse não mudará. Portas garante assim a sua continuidade, por interposta pessoa.
Será, afinal, a materialização da táctica de Mourinho (depois da sanção da UEFA): não está em campo, mas controla a equipa. Sucede que (ao contrário da equipa do treinador português) o PP está a jogar no seu campeonato: a segunda divisão.
Telmo Correia prestar-se-á a este triste papel de testa de ferro, garantindo o necessário resguardo a Portas, para que este possa fazer (não fazendo) a sua travessia no deserto. Há, realmente, gente para tudo!

2005-04-06

 

VALE A PENA LÊR...

...Este blogue. Para quem, como eu, tiver a paixão pela História, quem tiver fascínio pela Roma Antiga, vale bem a pena passar por lá e "navegar" no autêntico mar de saber proposto pelos autores nos "links" com arrumação temática. Bons textos, erudição e clareza.

2005-04-04

 

CONHECIMENTO DO INFERNO (III)

Todos os dias ocupava a mesma mesa, junto à grande janela do café. Chegava sempre a meio da manhã, pedia a meia de leite e uma torrada. Em gestos diligentes, habituais, colocava-se numa posição confortável. Durante as próximas horas concentrava a sua atenção fixando a rua, abstraindo-se de tudo. Dir-se-ia que através do vidro conferia o filme da sua vida. Não se lhe conhecia o nome, tão pouco outros dados relevantes, era apenas o cliente que escolhia o silêncio e o seu recolhimento como companheiros, se lhe ouviam a voz era tão-só para o quase mecânico registo do seu pedido.
Não sabiam que contava já 72 anos, “não parece” dir-lhe-iam, fosse ele dado a conversas de café, “está muito bem conservado para a idade” repetiriam em conversas vazias, prolongando o tempo subitamente sobrante.
Sabia que a sua vida valeria bem uma descrição, justificaria um relato interminável, talvez até garantisse espanto reverente, perante tão fantásticas narrativas. A verdade é que ele próprio estava mais preocupado em esquecê-la, bem vistas as coisas, o caminho que percorreu deixou-o ali mesmo, sózinho, sentado na mesa de um café, fazendo por prolongar uma refeição que será a única do dia, todos os dias.
Por vezes, tentava imaginar o que fariam os seus dois filhos, quem seriam, teriam agora quê, 40 anos o mais velho, 38 o mais novo? Fazia mentalmente as contas, confirmava a exactidão do raciocínio. Pudesse retomar a marcha da sua vida naquele dia em que decidiu fugir, pudesse regressar a casa pegar-lhes ao colo como se nada fosse, pudesse ser um pai, não um cobarde. Tarde demais, pensava sempre. Tomou o caminho errado, disso hoje não tem dúvidas. Apanhou a boleia inebriante de uma vida aparentemente fácil, deixou-se engolir pelo vórtice do momento, ficou agarrado para sempre a um vazio.
Ali estava absorto, fixando o vidro da montra pelo lado de dentro. Retomava, o fio da memória. Conferia a angústia pesada da culpa que carregava.
Julgava então ter descoberto a existência ideal, livre de compromissos, sem responsabilidades, tudo lhe era permitido e devido, pensava. Daqueles anos de folia recorda os biscates de ocasião, uma demonstração do seu génio pintando apressadamente um quadro, garantia de mais alguns meses de exaltação, voltas pela grande Europa, trabalhos de meses pagamentos de dias, siga a euforia que julgava eterna. As imagens desses dias foram ganhando os contornos da sua perdição. Jogou tudo nessa aposta, jogou a sua vida, perdeu.
Mais logo retomará o caminho, cada vez mais longo, cada vez mais pesado, em direcção ao quarto que ocupa naquele velho edificio abandonado. Partilha o espaço em ruínas com outros companheiros de infortúnio, vidas que não quer conhecer, bem lhe chega o seu fardo.
Mais logo chegará ao quarto, retomará o pensamento que o assalta todas as noites, angustiar-se-á com a ideia de adoecer, de perder a mobilidade, de ficar preso áquele espaço que só a noite disfarça.
Mais logo adormecerá, para sempre.

2005-04-03

 

2005-04-02

 

ORÁCULOS

José Pacheco Pereira decidiu brindar os leitores da sua crónica na última edição da revista Sábado com esta pérola acerca do Governo: “É agora que se estão a fazer as asneiras, depois é que elas se manifestam”, rematando o assunto com um “daqui a uns anos falaremos”.
Se me dão licença, pego na deixa e dou-lhe continuidade que isto, já se sabe, a falta de assunto é como o sol: quando nasce é para todos.
Estava capaz de afirmar que as as asneiras que se farão a meio do mandato, ainda não ocorreram e depois me dirão se estava ou não, correcto.
Mais: entendo, e neste entender percebe-se bem que há muito mais sapiência que não partilharei por ora, e claro daqui a uns anos falaremos, dizia, pois que entendo que serão feitos muitos erros no final da legislatura cujos resultados, está bom de ver, não serão descortinados senão na próxima legislatura.
Aliás, um passarinho ter-me-á dito (e aqui a referência ornitológica permite uma imagem mais viva, percebendo-se que há uma intenção óbvia do escriba deixar clara uma intimidade com a passarada, própria de quem partilha convivios muito variados), pois a verdade é que o passaroco, num óbvio registo de fuga de informação, encostou o bico, disfarçou com a asa, e sussurrou-me ao ouvido “consta que este Governo terá o seu final daqui a 4 anos”, naturalmente que estaremos todos para ver se a ave estava ou não correcta.
Tenho de reconhecer que para inicio de conversa a coisa já vai longa, é certo e sabido que a partilha das nossa argutas análises deve ser feita em doses moderadas, e a verdade é que tanta percepção como a que aqui deixei assegura-me um lugar de comentador político na nossa imprensa - daqui a uns anos falaremos!

2005-04-01

 

LARANJA A TOMAR (corrigido)**

Daqui a uma semaninha teremos mais um espectáculo ao vivo e em directo, com a exibição de outra produção política. Em Pombal estará o PSD envolvido na escolha do seu novo líder. Perdoe-se a imagem futebolistica, mas a opção será entre um clube da segunda divisão e um clube das distritais. A selecção será efectuada, descansarão os espíritos, arrumar-se-á a casa, aparecerá uma estrela convidada ou até mesmo duas, em jeitos de aviso à navegação, Menezes sairá feliz depois de horas de exposição mediática, negociará um cargo honroso para si e para os seus apaniguados, e a coisa fica despachada.
Ficará, contudo, a sensação daquela casinha que estando arrumadinha e escrupulosamente limpa, impressiona pela incrivel profusão de bric-a-brac de plástico, dos “naperons” a “decorar” o televisor, dos cãezinhos eternamente acenando que sim com a cabeça, das paredes “decoradas” com os quadros do menino com lágrima, das canecas saudosa “recordação de Lavacolhos*”, das fotografias com a legenda: “fomos tão felizes em Travanca de Bodiosa*”.
Ficará, enfim, a sensação de ser necessário a intervenção, mais tarde ou mais cedo, de um decorador...

*localidades reais e não fruto da imaginação (demencial) deste escriba. A primeira fica perto do Fundão, a segunda nas vizinhanças de Viseu. Nomes lindos!
** na realidade o congresso será realizado em Pombal (peço desculpa aos leitores de Tomar).

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