2006-02-16

 

CONCLUSÃO

Sabemos como a blogosfera é viciante. Sabemos como podemos estar tempos perdidos numa saudável “navegação”, absortos na leitura e no exercício da escrita.
E o tempo, fugidio, escasso, que se escapa.
Chega o dia em que a decisão não é mais adiável. Chega o dia em que é necessário escolher. Esse dia chegou, a escolha feita: o que sobra do tempo dedicado à profissão e à família será a partir de hoje totalmente dedicado a concluir o doutoramento, displicentemente mantido a “marinar” neste último ano e alguns meses.
O Abnegado termina aqui.
Depois de tantas opiniões, tanta escrita, faltam-me palavras para agradecer a todos quantos entraram por esta porta e me deram o gratificante conforto da sua presença.
Bem hajam.

2006-02-13

 

O PARTIDO QUE NÃO MUDA

Em entrevista concedida ao jornal Público e à Rádio Renascença, o afável líder do PCP discorreu sobre a importância da boa imagem que, no seu entender, “ajuda a compreender uma mensagem”.
O que talvez escape ao simpático líder é que a mensagem constitui, efectivamente, o problema.
Jerónimo de Sousa pode aparecer incensado, sorridente, apresentado carinhosamente como o “Jerónimo”, pode exibir os seus dotes de dançarino, mas a sua expressão cândida não elimina a dureza das opiniões do partido. E essas mantêm-se, tristemente, as mesmas.
Quando, na mesma entrevista, Jerónimo de Sousa nos garante que “em Cuba existe um processo revolucionário escolhido pelos próprios cubanos”, quando interroga “quem sou eu para dizer que a minha democracia é melhor do que a deles?”, está, afinal, a seguir o mesmo raciocínio do líder parlamentar dos comunistas, Bernardino Soares, que garantiu, em entrevista ao DN há precisamente 3 anos, ter “muitas dúvidas que a Coreia do Norte não seja uma democracia”.
Por mais maviosa que seja a voz, há coisas que não mudam.

2006-02-12

 

ENTRETANTO, NOS EUA...

...apura-se a pontaria.

P.S. Vale a pena ler este texto no Timshel sobre a noticia.

2006-02-10

 

ESTÓRIAS DO QUOTIDIANO (IX)

Ainda há pouco se ouvira o estrondo, o som metálico com voz de acidente, a chapa que grita no desespero da descompostura. Ainda há pouco aqueles que assistiram ao abraço das duas viaturas pareciam descansados “foi só chapa”. E de repente como se um touro que visasse a arena, o condutor que sai, que observa desorientado a ferida aberta, a chaga dorida no carro, no seu carro, no seu querido carro, as lágrimas de genuína perda, a raiva incontida, a rápida decisão, a mala traseira que se levanta, o taco de beisebol que se recolhe, a fúria que se veste, a investida sobre o outro – o causador daquele sofrimento, o celerado acelerado.
A altercação rasgando a normal rotina, arrancando os ordeiros citadinos da sua cordata modorra.
Daqui a nada, chegarão os agentes da autoridade para repor a branda e costumada ordem, daqui a nada, ainda a ira apossada do condutor garantindo-lhe uma viagem até à casa da autoridade.
Nem os basbaques que comentam, que relatam, que explicam, nem os policias que detêm, que interrogam, poderão saber que logo mais, aquele pacato pai de família, aquele cumpridor cidadão, sentir-se-á estranhamente aliviado, estranhamente revigorado, como se por um momento não tivesse sido o funcionário indiferenciado, o marido desprezado, o pai que se ignora, mas o protagonista, uma besta potente no auge do seu momento de glória.

2006-02-09

 

RETRATOS DE UM PAÍS

A assembleia regional madeirense aprovou (com os únicos votos do PSD) uma proposta apresentada pelos sociais-democratas para proceder "à avaliação das faculdades mentais" (sic) do deputado socialista João Cardoso Gouveia.
Entretanto, impotente, o PS solicitou uma audiência ao senhor Presidente da República. Compreensivelmente, a intenção dos socialistas não será outra senão desabafar junto da primeira figura do Estado português, dado que pouco mais poderão fazer.
Perante este bizarro caso podemos ser tentados a recordar as edificantes trocas de "argumentos" na mesma câmara, a propósito de prestigiados comerciantes do celebrado ramo dos sifões, podemos recuperar o ror de "declarações" do inefável senhor Jardim, poderemos até ceder ao impulso da ironia, todavia, este episódio não pode surpreender e está longe de constituir um epifenómeno insular.
Os notáveis deputados que apresentaram, e aprovaram, esta esdrúxula proposta, assim como os cidadãos escolhidos como presidentes de câmara que respondem perante a justiça, e outros digníssimos portugueses, não eram desconhecidos quando se apresentaram democraticamente em eleições.
Muito naturalmente, nenhum desmereceu, nenhum tergiversou, nenhum decepcionou. Fizeram, fazem e farão, exactamente o percurso que o seu “curriculum” prometia.
Estes senhores e senhoras não foram impostos, não foram designados, foram eleitos como nossos apreciados representantes tal como eram.
Para nossa vergonha, estes senhores e senhoras alardeiam na sua exuberância o que somos, reflectem as nossas convictas opções, exibem as nossas misérias.

2006-02-08

 

O COMUNICADO

A propósito deste inqualificável “comunicado”, o Ministro dos Negócios Estrangeiros afirmou: «se há pessoas que têm dúvidas sobre se eu condeno a violência ou não é uma questão que até me faz rir, porque é óbvio que sempre o fiz e sempre o farei».
Ora, estas extraordinárias declarações parecem configurar uma preocupante confusão entre a pessoa e o cargo.
Se o senhor Freitas do Amaral condena a violência, sempre o fez e promete que sempre o fará, tal constitui um comportamento do foro privado. Por certo, o senhor Freitas do Amaral não pretende que a bondade das suas atitudes transpareça como que por osmose nos documentos oficiais do Ministério que dirige. E a verdade é que o comunicado oficial que exarou, pura e simplesmente não condenou a violência, limitando-se a uma patética e desnecessária declaração.
Freitas admitiu também ter optado pela recatada via diplomática para apoiar o governo dinamarquês, o que contrasta com o estrondo público que escolheu como forma instrutiva de explicar aos ignaros «aquele aspecto que tem sido mais esquecido a propósito desta questão: a necessidade de compreender o que é a civilização muçulmana».
Pouco recomendável.

2006-02-07

 

ALIA JACTA EST

A oferta pública de aquisição lançada pela Sonae sobre a PT não é mais do que a expressão (ainda que em registo superlativo) dos mecanismos regulares do mercado. Uma empresa entende adquirir a maioria do capital de uma outra companhia e fá-lo em público, apresentando a sua proposta. É simples.
Poder-se-á especular sobre as verdadeiras intenções do negócio, sobre os parceiros envolvidos, ou até mesmo antecipar as consequências deste lance, contudo valerá a pena saudar o desenvolvimento da proposta de aquisição exactamente onde deve ocorrer: no mercado, sujeito a regras claras.
Perante esta investida da Sonae todos os protagonistas são, finalmente, chamados a jogo, por uma vez não já as cortinas de fumo, não já as jogadas de bastidores.
Os dados estão lançados.

2006-02-06

 

DANÇA COMIGO

O senhor Scolari anda aparentemente enfeitiçado pela ideia de treinar a selecção de futebol inglesa, predispondo-se já a “melhorar o idioma”, que supostamente não domina na perfeição. Pressuroso, garante em entrevista a uma rádio inglesa que a coisa fica despachada em “dois ou três meses”, altura em que estima um significativo à-vontade na língua de Shakespeare. O treinador concede que este desejo é apenas uma simpatia para os jornalistas dado que estranhamente diz “conhecer muito bem a linguagem dos jogadores”.
Impudicamente, Scolari exibe-se como se num baile, disponibilizando-se para dançar com um novo par.
Que tudo isto se passe enquanto treina a selecção portuguesa de futebol e a meses do mundial, não parece ser incomodativo para o brasileiro nem para os responsáveis que lhe pagam (principescamente) o ordenado.
Estão bem uns para os outros.

2006-02-03

 

ESTÓRIAS DO QUOTIDIANO (VIII)

Acaso acreditássemos na premonição, talvez déssemos algum crédito à angústia que agora mesmo começa a sentir aquele que desperta na grande cidade. Vemo-lo afectando uma expressão indefinida como se antecipando um indizível desconforto.
Ei-lo que sobe o estore, concluindo a escuridão do quarto, acolhendo a súbita iluminação matinal.
Que estranha ironia se esconde nos pequenos gestos, nos pequenos nadas; que absurda metáfora nos ocorre no justo momento em que observamos a invasão da luz na manhã daquele que em breve cairá na mais violenta escuridão.
Não o sabe ainda, pois que cumpre todas as etapas iniciais da sua rotina diária, registando somente um pequeno atraso – coisa pouca, não mais do que meia hora – o suficiente para que todos no prédio partissem apressados para mais uma jornada, oferecendo-lhe a condição de último a sair.
E a pressa, senhores, a pressa que levava quando entrou no elevador, olhava o relógio na ânsia das horas, dos minutos. A princípio nem deu fé do solavanco, só quando estranhou o silêncio percebeu estar fechado, encerrado, no velho ascensor. Ainda ensaiou um pedido de ajuda, premiu o botão do alarme, um grito, na expectativa de um amparo. E nada. E ele ali sozinho, indefeso, incapaz de lidar com a claustrofobia. E o espaço a tornar-se mais pequeno, os suores frios, o cérebro num turbilhão, o pânico que chegava, instalando-se comodamente, cumprindo a sua tarefa demencial.
“Um belo dia de sol” garantiam os que na ausência de conversa desconversavam; “essa é que essa, um dia luminoso”, respondiam os outros na verve meteorológica dos argutos. Repetiam-se os diálogos pobres, ricos de subentendidos, talvez uma forma de mudar o relato, esquecer aquele que acordara angustiado, aquele que conhecera há pouco a noite definitiva.

2006-02-02

 

DAS PRAXES

Um "breve inquérito escrito e anónimo", distribuído pelos alunos de uma universidade portuguesa, permitiu conhecer um pouco melhor o gracioso e exaltado mundo das praxes. Os resultados são reveladores e abrem mais uma janela para toda a sorte de abjectas e violentas práticas.
Evidentemente, ouvir-se-ão alguns castos e inocentes membros da comunidade académica sublinhar a “bondade” integradora destas alimárias boçais, chegando alguns ao prodigioso apelo da “tradição”.
Enquanto isso, os extraordinários “meninos integradores” persistem na “tradicional” exibição da mais canalha humilhação do outro.
Não se trata de folclore, ou “exageros” de púberes travestidos em bombas de testosterona, mas antes uma preocupante manifestação da forma como alguns alunos do ensino superior lidam com o poder (na subserviência e no vingativo vexame).
Em breve este caso regressará ao quarto escuro, onde se encontram os outros sórdidos exemplos de praxes que, volta não volta, surgem à tona dos dias. Entretanto, o carinhoso expediente persistirá, insidioso, “integrando” os mais novos na cultura de subjugação, na hierarquia da opressão, reproduzindo um arsenal de senhoritos pequenos ditadores, convenientemente "integrados".

2006-02-01

 

A ALMA DO NEGÓCIO (I)*

A dona Joaquina parecia ter desenvolvido um apurado mecanismo para avaliar as capacidades profissionais dos médicos: tudo se resumia a uma simples questão de quantidade. Segura do seu sistema, dividia os clínicos entre bons e maus consoante a generosidade na prescrição. Nem poderia ser de outra forma, dado que a receita, exibindo uma respeitável lista de fármacos, gritava preto no branco (cientificamente, dir-se-ia): ponham os olhinhos nesta senhora, vejam que a “pontada nas costas”, as “dores nas cruzes” que só Deus sabe, não é coisa inventada. Na farmácia, depositava a receita como se o peso das suas enfermidades se achasse reunido naquele pedacinho de papel. Ignorava que as cápsulas coloridas, guardadas com desvelo, não eram mais do que comprimidos de açúcar, ou placebos se lhe quisermos atribuir a sua definição técnica.
Os placebos começaram a ser utilizados nos ensaios clínicos controlados. Nesta metodologia cientifica pretende-se estudar os efeitos de um determinado medicamento administrando-o a um grupo de indivíduos e comparando-o com os resultados alcançados no grupo de controlo a quem foi ministrado um placebo (julgado inócuo), analisando-se os resultados em função da diferença verificada nos dois grupos. Todavia, com frequência, os placebos demonstraram um surpreendente desempenho, algumas vezes superior ao medicamento activo. Diversas outras pesquisas sobre os placebos foram sendo desenvolvidas, observando-se a sua eficácia nas mais diversas doenças. No fundo, o efeito dos placebos não é mais do que a aparente melhoria da saúde que não resulta de um tratamento específico, mas sim da crença e expectativas do doente.
No mercado as coisas não são diferentes: as expectativas desempenham também um papel maior. Dos diversos exemplos que ocorreriam para o comprovar sublinhe-se o clássico estudo de Levin e Gaeth onde se observou que a mesma carne rotulada com a menção “75% livre de gorduras”, foi indicada como tendo melhor sabor do que quando etiquetada com a expressão “contém 25% de gordura”. Mais recentemente, três investigadores norte-americanos procuraram estudar o efeito placebo de algumas acções de marketing. A pesquisa, publicada na última edição da revista “Journal of Marketing Research”, demonstrou que a fixação do preço pode alterar a eficácia dos produtos. Em três experiências, os autores provaram que os consumidores conscientes de que pagaram um preço mais baixo pelo mesmo produto (no caso, uma bebida energética apresentada como aumentando a acuidade mental) registaram piores resultados na construção de “puzzles” do que os consumidores que compraram o mesmo produto ao seu preço normal. Concluindo, desta maneira, que o preço pode exercer uma influência não percebida nas expectativas acerca de um produto; que essas expectativas podem ter impacto no desempenho do produto; e que as mesmas expectativas podem ser induzidas através de outro tipo de informação sobre a qualidade do bem, como sejam anúncios publicitários. Assim, as expectativas relativamente à relação preço e qualidade podem influenciar os consumidores exactamente como um efeito placebo. O estudo abre uma nova e interessante perspectiva na forma como os consumidores reagem às acções de marketing.
Alheia a todas estas investigações académicas, ignorando o seu papel neste jogo do consumo, a dona Joaquina vai juntando uma vistosa colecção de sobras de placebos, que julga medicamentos, cuidadosamente reunidos numa estante branca que exibe às visitas da casa. Não disfarçando o orgulho, guarda para o fim a apresentação daquele recanto especial, abrindo lentamente a porta, estendendo os braços e anunciando com voz baixa como se cuidando um respeito reverencial: “eis a minha farmácia”.

*coluna no Jornal de Negócios

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