2005-08-31

 

VERDADES SEM CONSEQUÊNCIAS

Ontem, no seu tempo de antena em directo, Manuel Alegre optou por ensaiar uma espécie de "discursus interruptus".
Numa intervenção desassombrada e muito longe da vulgata política, Alegre colocou o dedo nas feridas, apresentou bem os males que nos afectam, enfrentou de frente as chagas da partidocracia e da corrupção. De caminho, foi ainda capaz de identificar (com precisão cirúrgica) as óbvias deficiências da candidatura “monárquica” de Mário Soares.
Em Viseu, Manuel Alegre deixou as palavras vogar num crescendo que pedia o intuitivo climax na forma da apresentação da sua candidatura. Todavia, esfriou as expectativas de muitos que não ouviam uma intervenção tão clara e directa há muito tempo, refugiando-se na pretensa recusa de danificar o partido socialista.
Percebe-se que Alegre não queira ser responsabilizado pela derrota da Soares nas presidenciais, sucede que o discurso efectuado ontem será utilizado à exaustão pela candidatura de Cavaco como arma de arremesso durante a campanha, sendo as suas acusações, mais tarde, profusamente utilizadas como justificações para a derrota do candidato apoiado pelo partido socialista.
Entretanto, a ruptura que assumiu com o “status quo”, as afirmações fortes e incisivas que proferiu, terão necessáriamente eco e consequências para os partidos, incluindo naturalmente o seu.
Evidentemente Alegre não ignora estes factos, tornando imprecisos os argumentos para se furtar a avançar com a sua candidatura, também por isso, se exigia que ontem corporizasse o homem que resiste, o homem que diz não. Talvez não fossem tão poucos aqueles que o apoiariam (eu estaria nesse grupo).
Mantendo-se nesta posição, Manuel Alegre, arrisca-se a desenvolver um estranho jogo de verdades ... sem consequências!

2005-08-30

 

HEURECA

No dia em que se conheceu o segredo do brilho invulgar dos quadros da Renascença veneziana, foi também descoberto, pelo Jornal de Negócios, um “pequeno” engano do Governo na conversão de dólares em euros.
A Galeria de Arte Nacional norte-americana seguia há muito a pista da misteriosa luminosidade dos quadros pintados na república veneziana no século XV.
Naquele dia, Barbara Berrie chegou cedo ao laboratório, trazia uma ideia fixa, talvez a única hipótese que não lhe teria ocorrido, tantas as tentativas, tantos os erros. Ainda tremia de emoção, certa que estava de encontrar, daí a pouco, a justificação que perseguia para a sua réplica da gratificante exclamação de Arquimedes. Haveria de gritar, haveria de concentrar naquele brado todas as frustrações, os dias, semanas de estudo, de pesquisa. Haveria desenhar naquele berro o contorno de um desejo maior. Haveria de se elevar num voo de palavras, como se esconjurasse todos os males de que padecesse, como se naquele momento mágico não fosse ela, mas os pintores da renascença que num estranho bailado lhe depositassem nas mãos a receita procurada, o segredo finalmente revelado.
Ainda lhe tremiam as mãos quando se inclinou na direcção do microscópio, ali observaria dois quadros de Lorenzo Lotto. Não teria sequer a presença de espírito para o óbvio trocadilho, não diria já que o Lotto seria o seu loto, omitiria essa evidente perda de tempo, sentia que estava perto da revelação. Em momentos de estranha ansiedade, descodificava o que os seus olhos viam, parecendo-lhe afinal tão evidente. “Usavam vidro moído”, teria dito estivesse alguém ao seu lado. Deixou-se estar estranhamente silenciosa, ignorando se satisfeita por ter colocado o ponto final na pesquisa, esquecida já da promessa da açougada feliz.
Arquimedes aguardaria ainda a repetição da sua tão grata expressão. Não seria na descoberta da utilização do vidro moído pelos virtuosos venezianos, nem talvez a terá exclamado Carlos Filipe Mendonça, jornalista do Jornal de Negócios, quando se apercebeu do erro na conversão de dólares em euros que o Governo fez publicar no Diário da República de 8 Agosto. (cfr. edição do jornal de negócios de 29/08/2005 p.22)
Impresso em letras oficiais a verba: 750 mil dólares como contribuição portuguesa para o desenvolvimento agrícola dos países em vias de desenvolvimento. Temos portanto (diz o insuspeito Diário da República) 778.950 euros. Façamos as contas em matemática corrente, apliquemos a taxa de câmbio, encontrar-se-á a verba correcta: 608.000 euros. Quer isto dizer que o Estado Português irá gastar mais 170.000 euros por que o Governo não soube fazer contas? É sim senhor, respondeu uma fonte oficial do Ministério das Finanças.
Já vejo o leitor encolhendo os ombros, já o ouço comentar “tanta coisa e nada de novo não somos afinal o povo que menos domina a matemática? Caramba, seria natural que o Governo fosse diferente? Acaso não fazem parte da mesma massa?”. Já ouviria então um outro leitor compondo um ar de desdém “e a brincadeira do Arquimedes, ó menino, hein? Para aí feito intelectalóide atirando umas larachas com o de Siracusa, valha-nos Deus!”
E eu que me quedo, humilde, perante qualquer invectiva (mais ainda se de um leitor) já quase me faltaria a vontade de concluir, de dizer, que a expressão de Arquimedes seria ecoada logo a seguir - forma de garantir a descoberta da essência de ser português - quando se ouvisse a explicação da referida fonte do Ministério das Finanças, garantindo que o erro é grave, gravíssimo mesmo, “mas é anterior à tomada de posse de Fernando Teixeira dos Santos”!!

2005-08-28

 

NAÇÃO INSEGURA

Desde tempos imemoriais Portugal manifesta uma inaudita insegurança em si próprio. A “imagem” que os estrangeiros possam ter da nação ganha foros de ânsia doentia. Na expectativa de um comentário positivo, desfazemo-nos em desvelos raiando a subserviência, tudo se justifica por um elogio externo, pequeno e insignificante que seja.
À conta desta patologia, motivou-se o país em torno de loucuras, em torno de investimentos muito para além das nossas capacidades. Sem excepção ecoa a ladainha em forma de justificação suprema para todos estes desmandos: “melhorar a imagem de Portugal no estrangeiro”.
Na ressaca de cada “grande evento”, de cada “investimento espectacular”, mantém-se a roda-viva para insuflar entusiasmo nos indígenas, seja na forma de extraordinário aeroporto (talvez o melhor da Europa), seja linhas de comboios de alta velocidade, seja mesmo (deixem-nos sonhar) a realização dos jogos olímpicos. Tudo parece ser justificado se houver a certeza de captar o interesse (quem sabe a inveja) dos estrangeiros.
Neste colectivo esforço insano consomem-se recursos escassos e preciosos, olvida-se a construção ou reforço dos mais elementares alicerces de uma sociedade.
Vivendo em permanente ilusão, somos periodicamente chamados à dura realidade quando confrontados com a nossa infeliz pequenez, com os resultados do esbanjamento, da incompetência, com a infinita carência do essencial. Desgraçadamente, acabamos por ter de engolir em seco ao ler artigos como este e ver o que os outros verdadeiramente pensam de nós (infelizmente com razão).
É bom que tenhamos tudo isto bem presente nas próximas eleições ou quando ouvirmos algum responsável político convocando-nos para uma qualquer façanha para “levantar o moral” ou melhorar a nossa imagem "lá fora".

2005-08-27

 

EM NOME DA "OBRA"

As graves denúncias efectuadas pelo senhor Paulo Morais, na entrevista à revista Visão, foram recebidas pelo país com o costumado e secular desdém pela “temática”.
Pouco importa que o ainda vice-presidente da câmara municipal do Porto tenha nomeado algumas da endémicas chagas do “poder local”. A coisa arrumou-se célere com uma notícia anunciando um inquérito a efectuar (oportunamente) pelo Ministério Público, rematada com declarações do inefável (e ofendido) senhor Ruas - representante maior dos autarcas - para quem tudo se resume a uma birra do senhor Morais.
Não é de estranhar este olímpico desprezo num país que gerou, com desvelo, criaturas como os Torres, as Fátimas e os Jardins e os celebra.
Num povo que se habituou a referir o Estado pela etérea expressão “eles”, esquecendo por completo a primeira pessoa do plural, as “ousadias” são muitas vezes interpretadas como expressão da “iniciativa”. O envilecimento da actividade pública não desperta grandes paixões, entendendo-se que “ninguém é prejudicado”. Verdadeiramente poucos se escandalizam com a corrupção, sempre desculpada em função de um misterioso método comum que “todos fariam no seu lugar”, vista como algo natural e até aceitável se devidamente escudada na proverbial “capacidade de fazer obra”.
E a “obra” foi consolidada. Ao longo de décadas transformámos, afincadamente, muitas vilas e cidades em clones da Brandôa. Ao longo de décadas, plantámos vistosas rotundas e avulsas obras de decoração urbana, estranhamente iguais de norte a sul, com profusão de estruturas em aço inoxidável (muito moderno) e plásticos vistosos. Ao longo de décadas construímos prédios de habitação dotados de engenhosas partilhas de intimidade tal a qualidade dos materiais. Ao longo de décadas permitimos que o betão invadisse todas as parcelas disponíveis de terreno, construíndo muito para além das necessidades. Ao longo de décadas assistimos ao pato-bravismo em roda livre.
Com naturalidade, e em nome da “obra”, muitas autarquias gastaram sobretudo o que não tinham, endividando as gerações vindouras. Com naturalidade, criámos diversas estruturas assombrosas, pesadas, ineficazes, com nós (apertados). Com naturalidade erigimos muitos edis à condição de poderosos caciques.
Evidentemente piorámos a nossa qualidade de vida. Evidentemente esbanjámos dinheiro e oportunidades. Evidentemente pagámos (pagamos) caro os desmandos que desculpamos e aceitamos.
O entusiasmo, o empenho, na reeleição e defesa dos responsáveis pelas “obras” da nossa vergonha garante a eternização dos mais torpes hábitos, oculta o trabalho sério e probo de muitos autarcas.


P.S. Informa a edição de hoje do jornal Público que o vereador será ouvido pelo Ministério Público na próxima terça-feira. Aguardemos (com paciência) os resultados do inquérito...

2005-08-25

 

PERGUNTA(S)

Será que este texto do editor de Economia da SIC não merece investigação judicial e jornalistica? Será que se escrevem acusações desta gravidade e assobiamos para o ar? Será que não se justifica a exaustiva inquirição relativamente a todos estes putativos negócios espúrios? Será que não vale a pena esquadrinhar TODO o alcance de semelhantes jogos canalhas? Será que a própria televisão não poderia começar por justificar a sua obrigação de serviço público, seguindo a pista (afinal deixada pelo editor de um dos canais)? Será que estou enganado?

2005-08-24

 

CELEBRAR

...a criação do blogue Africandar com os "pesos-pesados" Leston Bandeira, Fernando Alves (bem-vindo à blogosfera Fernando) e António Gonçalves. Garantia de textos de primeira água, estórias, memórias e os afectos, testemunhos de uma existência maior. Eis, por fim, uma boa noticia.

2005-08-23

 

O ESTADO A QUE ISTO CHEGOU

Pudéssemos ser capazes de voar, pudéssemos observar do alto o país, o nosso, talvez tivéssemos a imagem enganadora de nuvens escuras que ameaçam (prometem?) a abençoada chuva. Ali estaríamos vogando no ar, tomando por Juno a nuvem, afinal o rasto negro do fogo profano, do miserável retrato de um povo desprotegido.
Não valerá sequer a pena tentar o sonho aéreo, vista daqui a realidade entra-nos, dolorosamente, pelos olhos dentro.
Ano após ano, livro branco após livro branco, relatório após relatório, a história repete-se. Não se aprende, não se corrige, não se evolui.
Não é sequer necessário ouvir as esdrúxulas explicações de governantes atarantados que balbuciam “ignições” e alarvidades avulsas. Não é sequer necessário escutar os repetidos e pungentes apelos "à unidade nacional". Basta ver os nossos dignitários olhando o céu na procura da explicação maior. Basta ver os nossos dignitários convocando a eterna resignação vincada pelo desagravo, forma outra de encolher os ombros: “é a vida”.
É, de facto, a vida, a nossa. Uma vida que se percebe entregue à sua sorte.
Um país colado a cuspo, ao mínimo abanão, à mínima ocorrência "fora do normal", soçobra. Hoje os incêndios, amanhã as cheias, talvez depois uma ponte, uma estrada, o diabo.
Uma nação desgraçadamente impotente, incapaz de se defender do previsível inesperado, dedicando-se à caótica coreografia da incompetência, especializando-se na explicação do inexplicável.
Não é já um jogo de argumentação partidária, de gostos, de cores, apenas a dolorosa observação da tragédia da nossa existência colectiva.
O Estado, lamentavelmente, chegou ao estado a que isto chegou.

2005-08-20

 

O PAÍS "PRODUTIVO"

Aqui fica o texto da minha coluna desta semana no "Jornal de Negócios", publicada na passada quinta-feira:

José possuía uma perspectiva muito própria da sua profissão. Para ele o taxista deve ter opinião sobre quase todos os assuntos, estando obrigado a partilhar o seu saber com os clientes ocasionais. Achava os políticos “uns vígaros”, não passava um dia sem que se entusiasmasse na descrição do que considerava serem as verdades sobre “eles”, agitando o jornal na coreografia da ira que lhe deixava a face ruborizada. Passava o lenço pela testa cuidando limpar os sinais da sua cólera quando, terminada a corrida, disfarçava uma pressa de urgências tamanhas, não fosse alguém pedir uma factura; “a gente não pode declarar tudo, derivado à crise”, desabafava junto de António que lhe garantia ser esse o procedimento correcto para evitar “andar a engordar pançudos inúteis”.
António aproveitava a interminável baixa por doença para manter um esgotante ritmo de trabalho em proveitosos biscates. Era, à sua maneira, uma estrela lá no bairro desde que prestou um depoimento (em directo) a uma jornalista da TV, afirmando, sem papas na língua, que “isto está como está por causa dessa gajada que está no poleiro”, abria uma excepção para o presidente da Junta de Freguesia (uma boa alma) que há anos fez o favor de mover influências colocando-o na empresa do Lopes, dono da “fábrica” – como todos lhe chamavam.
A “fábrica” era uma pequena indústria de confecções que se arrastava com dificuldades, “já podia ter fechado se fosse tolo e pagasse os impostos para essa cambada gastar” afiançava Lopes. Aliás, não disfarçava a estima pelo “guarda-livros” homem de mil artes, que sabia tecer os “paralelos” que ambos liam na perfeição - forma de garantir um estimável prejuízo anual. Sabia que o mal do país era ter poucos empresários (como ele) tal como repetiu quando visitou o dr. Saraiva, que há anos lhe tratava dos engulhos legais em que teima envolver-se por força dos seus “maus fígados”.
O advogado tinha-lhe assegurado que a sentença desfavorável não era preocupante: “mete-se um recurso, e outro ainda se for preciso, que isto anda tão atulhado que está aqui está prescrito, vai ver”. Quem sabe, sabe, pensou o Lopes que de tão aliviado lhe deu para discutir política com o causídico, o outro, homem de leituras e muita sapiência, garantiu-lhe que o problema fundamental “reside na crise da Justiça, repare bem nesta miséria dos tempos infinitos que a nossa Justiça demora, um inferno”, enquanto acompanhava o Lopes à porta, já atrasado para o almoço com Bernardo - “um notabilíssimo gestor”.
Bernardo tinha-se habituado muito cedo a ser tratado por “sôtor”, forma respeitosa de garantir “uma saudável distância”. Pouco importava que não tivesse concluído o primeiro ano do curso, aprendeu precocemente que a grande arte de viver é feita de outros saberes. Sabia que precisava conhecer e conviver com os poderosos. Enquanto hesitava entre aventais e fés fervorosas, conseguiu, ardilosamente, um lugar no partido onde reforçou cumplicidades e amizades que o protegiam a troco de sinecuras para os seus.
Compôs o nome, acrescentando uma consoante ao apelido, que assim ganhava uma confortável distinção, e foi construindo uma história, convincente, de antepassados gloriosos e fortunas desfeitas por infortúnios. Encontrava na afectação de gestos e ademanes o testemunho do “berço” que a sua imaginação tinha criado. Geria com inegável destreza os seus silêncios, evitava qualquer decisão utilizando enigmáticas expressões recheadas de termos técnicos anglo-saxónicos, ouvidos nos seminários que frequentava. Apreciava o estatuto que lhe conferiam os cargos que ia conquistando numa inexorável ascensão profissional, acumulando passagens meteóricas pela administração de empresas de onde saía para ocupar cargo mais destacado, numa empresa de maior dimensão.
Estão todos “a banhos” aproveitando as merecidas férias, aguardando, ansiosos, o regresso do campeonato nacional de futebol.

2005-08-17

 

O TEMPO QUE AÍ VEM

As próximas eleições presidenciais vão enfatizar a penosa realidade portuguesa. Cavaco e Soares corporizam um tempo que já foi, constituem mais do mesmo. Um candidata-se para “fiscalizar” o outro não quer “passeios triunfais”.
O simples facto de o país “absorver” estas duas candidaturas mostra bem o tempo que aí vem.
A geração que ocupa o poder político foi forjada na máquina (de)formadora das jotas. Quase todos não têm qualquer experiência profissional para além da política, vivem de e para a política, como se esta fosse o principio meio e fim. Foram construindo a sua “carreira” utilizando a cartilha que aprenderam precocemente. São políticos profissionais, sobrevivem numa realidade de fumo construída à base de inconsistências sem qualquer ligação ao “mundo real”. A sua incapacidade para imaginar a vida fora desta redoma implica a aceitação das “ordens” superiores, garantindo a sua eterna aquiescência, apenas interrompida pelas convenientes intrigas em “off” e malabarismos em jogos de bastidores. Para esta classe emergente, o país é apenas uma justificação para a existência da “nobre” função que desempenham.
Evidentemente, os partidos estão confortavelmente suportados por esta gente que se vai reproduzindo em circuito fechado.
A política vai-se encerrando às mãos destes “protagonistas”. Os partidos vão gerando apenas e só estes "quadros", que distribuem displicentemente pelos cargos disponíveis de governação e administração. Quando assumem essa responsabilidade, ocultam a sua insegurança socorrendo-se de "conselhos" de quem "sabe". Assim, aproveitam o conforto dos cargos, sem qualquer peso, saber, capacidade, ou vontade para contrariar os interesses (defendidos por “profissionais” capazes que encontram nesta degenerescência campo fértil para a sua rapina).
Cria-se um fosso crescente entre o país e os seus governantes. Este caldo começa por esgotar os protagonistas credíveis, para acabar em autofagia. Entretanto, vai deixando um rasto extravagante de incompetência e administração miserável mas, sobretudo, uma criminosa descredibilização da política que abre as portas a todas as desgraças.

2005-08-16

 

A MESMA FATALIDADE

Por terras gregas comemora-se o primeiro aniversário da criação da mais luxuosa e cara lixeira do planeta.
Depois da cerimónia de encerramento dos jogos olímpicos, a grande maioria dos equipamentos construídos para o efeito ganha musgo e acumula detritos. Abandonados à sua inutilidade, os estádios, piscinas e pavilhões expõem mais um demencial esbanjamento.
Evidentemente, o défice local registou um convincente acréscimo, obrigando os descendentes de Sócrates a inspirados trabalhos de cortes e diminuição das despesas públicas.
Lá, como cá, sempre as “autoridades” políticas a divisar o grande feito. A senhora ministra Fanni Palli-Pétralia está especialmente orgulhosa pois entende que organizaram “os melhores e mais bem sucedidos jogos de sempre”. Pouco importa, claro, que nesse estimável exercício tenham sido gastos 13 mil milhões de euros - uma ninharia quando está em jogo essa coisa ponderosa e tremenda como o “orgulho nacional”.
Lá, como cá, a mesma fatalidade.
Lá, como cá, a insegurança de querer ser “rainha por um dia”.
Lá, como cá, a serôdia (e caríssima) necessidade de ser reconhecido, de viver acima das suas necessidades.
Por cá, temos a bondade de reincidir na asneira, temos a falta de imaginação de repetir a estafadíssima defesa do “orgulho nacional” para justificar mais "rotundas" com grande "visibilidade".
Que estranhas maladias obrigam nações com História a tão profunda insanidade?

2005-08-11

 

OTA NO JORNAL

Mais uma corrida, mais uma viagem. Hoje foi a vez do senhor ministro Mário Lino publicar o seu artigo de opinião. No Diário Económico o ministro das obras públicas começa por dizer: “quanto à pretensa falta de divulgação de dados e informações sobre esses estudos, a mentira não podia ser mais descarada”. Numa página e meia o ministro não foi capaz de sair deste tom de generalidades, garantindo que todos quantos ousam contestar a construção de um novo aeroporto não fazem mais do que “manter um clima depressivo criado desde 2002” esses malandros que pretendem ver a nação sorumbática, desejam obviamente “lançar a dúvida na sociedade portuguesa e na sua ambição e capacidade para ultrapassar as actuais dificuldades” (sic). O ministro argumenta ainda com a existência de um estudo de impacto ambiental (1998-1999) que esteve em consulta pública pelo que quanto a informação estamos conversados, ainda assim, o Governo (magnânimo) considera “apresentar publicamente os estudos (…) no quadro das decisões recentemente tomadas”.
Estas extraordinárias expressões arrepiam, são justamente estes argumentos vagos, em “politiquês” que justificaram, justificam e certamente continuarão a justificar, toda a sorte de “elefantes brancos”. Quisesse o senhor ministro das obras públicas ler os discursos dos seus antecessores e encontraria as mesmas razões para legitimar investimentos tão desesperadamente importantes para “a ambição e capacidade da sociedade portuguesa” como os excelentes, e muito úteis, estádios de futebol do Euro 2004.
O senhor ministro Mário Lino termina o seu escrito com um imperativo “haja decoro”: eis o único ponto em que estamos de acordo.


P.S. Mais pormenores sobre o estudo citado pelo senhor ministro poderão ser encontrados aqui.(via bloguitica)

2005-08-10

 

ESCRITA MAIOR


António Lobo Antunes comemorou 25 anos de escrita em 2004. Mais do que homenagens de circunstância, vale bem a pena revisitar, com frequência, a sua escrita maior.
Actualmente, o autor reconhece que está mais calmo e tolerante com jornalistas menos esclarecidos. Admito que seja um exercício difícil. Recordo uma entrevista publicada há alguns anos no "Público", não retive o nome da entrevistadora, apenas lembro que tentou ser engraçadinha (talvez uma dessas meninas e meninos muito modernos cujo alcance literário se esgota nas embalagens dos perfumes). Enfim, a menina quis fazer uma graça, arrancando a sessão com uma pergunta solta e muito fresca (cito de memória) "diria que o Lobo Antunes é o Herman José da literatura, não lhe parece?". Está bom de vêr que a resposta, assim como toda a entrevista, foi de arrasar, tornando-se a dado passo um "diálogo" sem nexo, em que a "menina" se perdeu numa aventura bem mais complexa do que esperava.
Se recordo este episódio é por que, em certo sentido, acabou por ser um exemplo (ainda que involuntário) de "non sense" com alguns momentos hilariantes.
Aliás, encontram-se nos livros de Lobo Antunes alguns exemplos do mais sofisticado humor escrito em lingua portuguesa. Não resisto a deixar aqui, com a devida vénia, apenas dois pequenos exemplos retirados daquele que considero, ainda, um dos seus mais brilhantes romances: Fado Alexandrino.

"O incomparável equilibrista sueco Charles pinchou aos saltinhos no escuro, apertado num baby-grow amarelo, reluzente de lantejoulas e vidrilhos. Era baixo, moreno, de patilhas, tipicamente nórdico de Marvila, e quando a certa altura se enganou escapou-se-lhe da ramagem preta do bigode um impetuoso Foda-se de viking. A bela Janete, minúscula e rabuda, de longos cabelos pontuados de palhetas a encarapinharem-se em desordem nas espáduas, rodopiava em torno do artista o qual se multiplicava em pinos lamentáveis, sublinhados pela orquestra de compassos trágicos de tragédia".

(...) "À Mademe Simone seguiu-se o genial ilusionista búlgaro Mikael Mikaelov, que despejava jarros de leite em cones de papel de jornal que se transformavam na bandeira portuguesa e solicitava a colaboração do público com o sotaque do Porto típico dos Eslavos, as irmãs Smith, da Califórnia, numa gentil cedência do casino de Nova Iorque, em exercícios de forças combinadas (uma delas, de resto, era a lindíssima janete, a acompanhante do equilibrista sueco de há pouco) desfazendo-se em cambalhotas e mortais, Marina Madragoa, a mais recente descoberta do fado, acompanhada do seu conjunto privativo (o torcionário do piano e a lombriga do saxofone, que mudaram de casaco para a circunstãncia) e após alguns minutos de nula expectativa e absoluto alheamento (preparai-vos, damas e cavalheiros, para o número sem par que se vos reserva), a campeã do strip-tease Melissa, inveja das mais célebres estrelas do cinema italiano, e singularmente parecida com a deusa do Fado, com a diferença de se manter em silêncio ao passo que a cantora, descomposta pela inspiração lírica, urrava pelo gregório ao microfone, como as sereias dos bombeiros num terramoto de nádegas."

2005-08-06

 

FUMO NEGRO

Como se fora uma punição, eis que se cumpre esta estranha e regular saga dos incêndios. Não há explicação para as estafadas explicações servidas à hora dos jornais televisivos. Se dúvidas persistissem, as chamas encarregam-se de nos trazer no estrépito da sua doentia marcha, o eco da nossa vergonhosa incapacidade de cuidarmos do que é nosso, a incompetência para a mais elementar organização.
Não é apenas a floresta que arde no Portugal de Agosto. As nuvens de fumo que podemos vislumbrar no céu do nosso descontentamento levam os destroços da mata, mas também as cinzas da esperança de muitos que esperavam mais, muito mais, deste Governo.
À medida que o tempo passa é cada vez mais difícil não perceber que algo vai doentiamente mal nesta governação. Um governo que registou começos auspiciosos, aparência de rigor, rumo corajoso, receitas definidas, demonstra-nos como tudo não passava de uma ilusão, que são outros os seus interesses.
Talvez o “elenco” governativo, não tenha reparado como foi incendiada a expectativa de mudança de um pais inteiro, talvez o “elenco” governativo não tenha compreendido que naquelas cinzas vai muito do capital de apoio necessário a um Governo.

2005-08-04

 

O ANÚNCIO

Por estes dias em que a preocupação maior é "ter" e exibir os haveres, procurando para a sua compulsiva aquisição, o crédito, esquecendo o saber e o enriquecimento cultural. Por estes dias em que a publicidade se aproveitou deste vazio, fazendo uso do "kitsch" em tristes frases feitas que fazem as delícias das conversas que nada dizem. Por estes dias, encontrei a fonte de inspiração para a minha coluna desta semana no "Jornal de Negócios", publicada hoje (adaptando um texto anterior aqui do Abnegado) e que deixo aqui na íntegra:

"João era um homem de rotinas bem definidas, para ele, no verão, o fim-de-semana é passado na praia. Mal chegava o domingo, pela fresquinha, preparavam-se os “tupperwares” com os viveres (coisas levezinhas que o calor não convida grandes apetites). Assim que a feijoada, o arroz de tomate, os croquetes e a melancia estavam devidamente embalados, reunia-se a prole e iniciava-se o processo cuidadoso de colocação da família na viatura. Exigia alguma perícia encaixar cinco criaturas num Fiat Uno, tanto mais que três delas acusavam alguns quilitos a mais (nada de significativo, como no seu caso, dado que 120 quilogramas dispersos por um corpinho espadaúdo com 1,60m).
A viagem correria calma pois que stress já chega o que sofre todos os dias como contínuo num edifícios de escritório. Exceptuando uma pequena gritaria (civilizadíssima) com o condutor da frente na fila à saída da ponte, um toque mais vivo na viatura que teimava parar a cada sinal stop (que não causou mais danos do que uma traseira deitada abaixo – carros pouco resistentes, já se vê) e um quase imperceptível cumprimento mais azedo à mãe do cidadão que estacionou no lugar que “já estava a localizar desde o semáforo”, tirando estas pequenas ocorrências, a jornada foi entediante. Tanto melhor que se carregam as baterias.
Chegados à Caparica, repetia-se o tormento para extrair aqueles seres do automóvel. É sabido que os corpos dilatam com o calor, e apesar de João ter adquirido uma vistosa ventoinha para o “tablier”, não se notava grande diferença. A custo lá iam saindo em exercícios próprios de contorcionista. Difícil era retirar a dona Benilde, sua sogra, tarefa que reclamava o trabalho conjunto dos dois filhos, uns matulões que agarravam nas pernas e nos braços da avó e à uma a puxavam com sucesso. É certo que a senhora adquiria novos hematomas por cada saída, mas sempre espairecia e o arzinho do mar fazia-lhe muito bem.
No areal sentia-se em casa. Enquanto os familiares se dispersavam em afazeres mecânicos, João montava o seu posto de observação. Sentado na cadeirinha, estendia “A Bola” interpondo estrategicamente o jornal entre a família e a multidão. Devidamente ocultado, iniciava a detalhada análise do estado de saúde das senhoras que alcançava no seu ângulo de visão, concluindo quase sempre com um magnânimo: “estão cada vez melhores”. Nem mesmo o torcicolo, que sempre adquiria nesta distracção concupiscente, o impedia de arregalar o olhinho guloso.
Ocupado com o saudável exercício visual, ocorria-lhe a ideia que matutava há um bom par de meses. Sabia que escondia um talento para a publicidade. À força de ver desfilar na televisão a representação dos seus familiares em anúncios de uma instituição bancária, tinha percebido que chegaria a sua hora. Já tinha até uma ideia muito precisa de como deveria ser o seu reclame. Imaginava como cenário o café do Antunes, ali estaria a mesinha do costume, os amigos (enquadrados por um apreciável número de garrafas de cerveja) discutiriam as vantagens do banco, no final ele mesmo remataria: “essa é que é essa!” fazendo acompanhar a exclamação por uma decidida palmada na coxa direita, encarando a câmara com um sorriso confiante.
João não duvidava, tornar-se-ia uma celebridade mal aparecesse na televisão oferecendo aos seus compatriotas uma nova expressão para preencher o vazio das suas conversas. Animava-o a ideia de ser convidado dos programas matinais das TV’s, aparecer nas festas estivais das discotecas algarvias, contar a genialidade da sua ideia a uma revista cor-de-rosa, receber um inquérito de verão de um qualquer jornal popular, partilhar o tonto mundo efémero das “socialites”. Bem vistas as coisas, era tão “artista” como todos os outros “famosos”. Essa é que é essa!"

 

OTA E OS "ESTUDOS"

Enquanto o Governo se mantém estranha e inaceitavelmente silencioso relativamente à justificação para os investimentos na OTA, vale a pena ler este excelente exemplo de serviço público do Paulo Gorjão, assim como este outro do Luís Aguiar-Conraria.

2005-08-03

 

ELE(S) ANDA(M) AÍ

Há muito que está desconfortável, entende que os seus dias andam falhos de “influência”, sente uma espécie de formigueiro, uma indómita vontade de actuar, de jogar. Ainda se tentou convencer que se poderia retirar e comandar o país fazendo uso dos meios – afinal tão simples – que tantos anos de "praxis" lhe tinham ensinado. A principio foi descobrindo um confortável agrado no impacto dos artigos, comentários, e manipulações, parecia-lhe que poderia divisar uma interessante posição de “sage” da nação e apreciar, por fim, uma existência mais descansada, com o tempo subitamente elástico, permitindo uma dedicação a ocupações outras. Pois o tempo, esse grande arquitecto, acabou por esculpir a sua obra maior: a frustração. Foi-se apercebendo da construção que o tempo se encarregava de ir tecendo, minando-o por dentro, deixando-lhe progressivamente um amargo de boca.
E os amigos, o séquito, a recordar os dias andados na grande orquestra de que foi o maestro, a incentivar, a puxar, a desafiar.
E ele que começava a ser dominado pela inebriante saudade, pela fome e sede de poder, a dizer que sim, ele (e só ele) foi grande, ele (e só ele) foi capaz de conferir a esta “choldra” alguma luz – a sua, pois então.
E ele que se olhava no espelho e via reflectida a doce imagem de um mito.
E ele que sentia que o destino o sugava, que o convocava, que lhe exigia um mandato no palácio.
E ele que se mentalizou.
E ele que teceu a teia em longos meses de laboriosa filigrana.
E ele que avançou para o grande vórtice seguro que o país lhe cairia nos braços, desejoso da materialização do regresso de D. Sebastião já desfigurado da travessia longa de uma década.
Guiado por uma mão invisível, que afirma ser a nação, saíu do Algarve e foi recebido pelo Presidente da República de manhã e à tarde.
O modesto e simples cidadão que garatuja estas palavrinhas gostaria de lhes dizer que poderão contar com todos os votos, menos com o seu. É a vida!

2005-08-02

 

ESTADO DE (DES)GRAÇA

É conhecida a importância do simbólico na política - como diria o senhor de Santa Comba (de má memória): "em política tudo o que parece, é". Tendo presente este princípio, não é certamente despiciendo que o novo ministro das finanças tenha decidido que a sua primeira medida fosse esta.
Para quem ainda tivesse dúvidas, eis que ficamos esclarecidos quanto às intenções e "estratégia" do senhor Teixeira dos Santos. Na sua insuportável clareza, o nóvel ministro diz ao que vem, destrói qualquer esperança que pudesse ser depositada na sua acção (outros como eu, que, ingénuamente, esperei algo substancialmente diferente). Num ápice levanta o pano e mostra-nos a pavorosa noção que tem da "meritocracia" e do interesse público, escolhendo alguns dos mais "brilhantes" gestores nacionais (a senhora Celeste Cardona e o senhor Armando Vara, entre outras "personalidades") para a administração da CGD.
Enquanto prepara as malas para as suas retemperadoras férias no Quénia (em busca de outros "animais ferozes"), o senhor primeiro-ministro deixa para trás um atarefado grupo de "ajudantes" teimando transformar o país num "safari".

2005-08-01

 

VALE A PENA LER...

-A justa recordação de um português maior neste texto de António Viriato.
-O blogue do recentemente extinto jornal O Comércio do Porto.

This page is powered by Blogger. Isn't yours?