2005-01-19

 

BEM VINDOS TODOS AO SALÃO DE FESTAS*

José considerava-se um bom profissional. Para ele o taxista era, antes de mais, alguém que tem opinião e a partilha com os ocasionais clientes. Sentado ao volante, mantinha-se informado à força de doses generosas de noticiários que compunha com a leitura do jornal da sua eleição, aquele que conta as verdades “tal como elas são” e sempre traz a noticiazinha dos “bastidores” da “quinta” que isto, já se sabe, é um vicio que se ganha. José achava os políticos “vigaros” que “andam lá para se encherem”, não passava um dia que não se entusiasmasse na descrição do que achava serem as verdades por trás “dessa cambada”, agitando o jornal na coreografia da ira que lhe deixava a face ruborizada. Ainda passava o lenço pela testa cuidando limpar os sinais da sua cólera quando, terminada a corrida, disfarçava uma pressa de urgências tamanhas, não fosse alguém pedir uma factura. Que diabo, um homem não pode declarar tudo, assim como assim, já é uma desgraça.
Era isso mesmo que desabafava com João que lhe garantia fazer ele muito bem, ainda para mais, pagasse ele e podia ter a certeza que estava “a engordar” esses “chulos que ganham fortunas para estar a dormir lá na assembleia”. João, considerava-se um homem com convicções, era, à sua maneira, uma estrela lá no bairro, desde que prestou um depoimento (em directo) a uma jornalista da TVI, tendo na ocasião dito, sem papas na lingua, que isto está como está por causa “dessa malta que ocupa o poder à nossa custa”. João abria apenas uma excepção ao senhor Rodrigues - uma boa alma - presidente da Junta de Freguesia, que não se esqueceu dele e fez o favor de mover as suas influências colocando-o como operador de empilhador na empresa do primo, um outro Rodrigues, dono da “fábrica” – como todos lhe chamavam.
A “fábrica” era uma pequena indústria de confecções que vivia com algumas dificuldades. “já podia ter fechado se fosse tolo e andasse para aí a pagar os impostos que essa gajada queria que pagasse” afiançava Rodrigues (o empresário). Aliás, não disfarçava a estima pelo “guarda-livros” homem de mil artes, que sabia tecer os “paralelos” que ambos liam na perfeição, forma de garantir um estimável prejuízo anual. Rodrigues (o empresário) considerava “uma vergonha” que o “Estado não soubesse gerir”, na sua forma de ver os “políticos querem é poleiro, não sabem gerir”. Ele que se considerava um honrado “empresário” como não se cansava de repetir, tal como hoje o fez quando visitou o dr. Saraiva, o advogado que há anos lhe tratava dos engulhos legais em que teimava meter-se por força dos seus “maus fígados”. O dr. Saraiva tinha-lhe garantido que não se preocupasse quanto à sentença que lhe tinha sido desfavorável, pois “mete-se um recurso, e outro ainda se for preciso, que isto anda tão atulhado que está aqui está prescrito, vai vêr”, o raio do homem sabia da poda, pensou o Rodrigues que de tão aliviado lhe deu para discutir com o dr. Saraiva estas coisas da política, o outro, homem de leituras e muitas sabedorias, lá lhe disse que o problema “é termos gente pouco sabedora das coisas das leis, veja bem a crise da Justiça, repare bem o sr. Rodrigues nesta miséria dos prazos, dos tempos infinitos que a nossa Justiça demora, um inferno”.
O dr. Saraiva não tinha “opção partidária” como repetia. Para ele, um estudioso da coisa pública, os políticos eram todos “uma corja de inuteis”, orgulhava-se de nunca ter votado. Mais radical era a sua mulher. A dra. Saraiva, economista, exercia a sua função numa conhecida multinacional. Tinha-lhe ficado dos tempos de “contestatária” uma convicção: “quanto menos dermos ao Estado melhor”, achava que o Estado não “tinha capacidade de gerir o dinheiro”, revoltava-a particularmente o rendimento minimo garantido que só serve para engordar “malandros que não querem trabalhar” tal como “os políticos”. Ainda hoje se lembra do que lhe aconteceu quando quis recuperar de um problema de saúde psicológica (resultado de muito stress, já se vê), toda a gente percebia que necessitava de um aninho (pelo menos) de baixa, tal como constava do atestado que um médico amigo tinha assinado. Mas uma mulher enérgica como ela não conseguia estar parada e, claro, foi mantendo umas contabilidadezinhas e umas assessoriazinhas a empresas do seu ramo (quase gratuítas, só para se manter activa, como garantia). Pois “eles” lá na Segurança Social foram investigá-la, a ela vejam bem. Nos momentos de cólera (cada vez mais frequentes) bramava que aos “os gatunos” ninguém lhes toca “têm medo”.
A sua amiga Nini repetia-lhe que por causa desse pormenor tão “piqueno” não a deviam ter perseguido. Eram todos “vermelhos” dizia-lhe. Benzia-se, sempre que assim classificava os políticos, a palavra até lhe queimava os lábios. O paizinho se fosse vivo, sabe Deus se aguentaria ouvir a sua Nini pronunciar tão vil palavra. O paizinho nunca necessitou trabalhar, as terras da familia, lá no Alentejo, sempre davam os rendimentos para viver “como deve ser” para gente “da sua condição”. Foram, estes “políticos” que deram cabo disto tudo. Vejam bem que até os filhos dos “seus” camponeses agora têm licenciaturas, ao que isto chegou, logo eles, familia tão importante que nunca precisou estudar, menos ainda (abrenúncio) agarrar-se aos livros como esses intelectuais...
(continua)

*Título descaradamente “roubado” ao Sérgio Godinho.

Comentários:
O estado debilitado dos valores republicanos é acompanhado nessa debilidade por outros valores de referência social, como são os valores cristãos, estes saõ acompanhados nessa debilidade pela falência da fé. Remata-se este quadro com a fraqueza do valor da Nação. Independente da importância que lhes damos, eles foram centrais na doutrina social e são incontornáveis num debate. Pois alargue-se o debate à debilidade de valores de referência e tenha-se presente que embora existam especificidades nossas nesta crise, ela tem também contornos de uma crise civilizacional da cultura Ocidental.
“Tonteria Real” O seu texto ilustra de forma perfeita o embuste monárquico.
Lágrima.blogs.sapo.pt
 
Lê-se com um sorriso e decerto foi escrito com alguma, e contida, mágoa.
Parabéns.
 
Luís, olha que na "à la minute" que tiraste ao país, o país não sai lá muito bem na fotografia e, como sou português, vou atribuir as culpas ao fotógrafo...
Parabéns pelo post.
 
Luís, rindo-me e lembrando-me de um colega que, sempre que falava de nós, portugueses, nos punha de rastos. Eu, tentando "levantar-me", perguntava-lhe: - És francês?... inglês?... extra-terrestre?... ou desencarnaste e estás a ver-te de cima?...
É que ele, tal como todas as "figuras" do seu "post", falava como se não fizesse parte de nós, os epitetados.
Entretanto, aguardo a continuação...
 
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