2005-02-06
BEM VINDOS TODOS AO SALÃO DE FESTAS (IV)
Todos os anos a família Della Santa cumpria o ritual de celebrar a data de nascimento de João Della Santa, a grande referência do clã. Nesse dia era sabido que se recordariam os seus feitos numa ladainha a ganhar progressivamente componentes litúrgicos. João ia adquirindo contornos beatos, colocado no altar da moral, do comportamento, e referenciado como “um grande homem” de Portugal. João era a base daquela família, mas a memória colectiva da linhagem tornava-se estranhamente difusa quando se tentava recuar na sua história.
Paco tinha fugido à miséria na sua Galiza natal, era um homem desamparado pela vida, contando apenas consigo próprio. Quando chegou a Lisboa, trazia somente a roupa que vestia, um nome em jeito de alcunha e uma imagem da Santa da sua devoção. A mesma que apontava quando lhe perguntavam o nome. Respondia sempre: Paco della (apontando para a imagem), la Santa. Com o tempo ficou Paco Della Santa.
Tinha uma invulgar ambição, inflamada pela inteligência viva e extraordinária capacidade de trabalho que lhe permitiram construir um verdadeiro império empresarial que geria com mestria. Foi acumulando uma assinalável fortuna que investiu em terras, tornando-se um apreciável latifundiário.
Quis que o seu filho tivesse uma posição social que lhe era negada. Quando nasceu João destinou-lhe um futuro radioso. Cedo percebeu que ao petiz lhe sobrava em moleza o que lhe faltava em inteligência. Chegado à idade madura colocou-o na recentemente criada Câmara Corporativa, garantindo-lhe um lugar de procurador. À custa de subornos e financiamentos vários, ia conquistando para João uma vida política dentro da União Nacional. Pagava-lhe os vícios, assegurando-se que estes se mantinham em cuidadoso recato. Tinha dado instruções precisas para que João não tivesse qualquer papel nas empresas.
Paco, o galego, às portas da morte sentia-se realizado. Tinha enriquecido, e criado uma família cujo nome era hoje reconhecido, não só pelas empresas que criara, mas também pela mão deste filho cuja ligação ao Estado Novo subsidiava.
João era um homem menor, pouco dotado de inteligência e tomado por uma indolência crónica, não deixou outras marcas da sua pobre existência do que as forjadas e alimentadas, mais tarde, pelos seus descendentes.
Os seus filhos seguiram-lhe as pisadas delapidando a fortuna que Paco tão diligentemente acumulou. Entendiam que a “sua posição social” exigia um conforto e luxo que não poderiam abdicar e que trabalhar era pouco digno da sua condição. O jogo e as mulheres iam absorvendo o pecúlio familiar. A sua incapacidade era evidente. Acumularam erros primários de gestão que atribuíam aos seus trabalhadores que consideravam “uns inúteis madraços”. No final dos anos 60 as empresas encontravam-se já descapitalizadas e numa precária situação. A grande fortuna era já uma sombra. Tinham começado a vender os terrenos e algumas empresas para alimentar a grande roda do fausto e do vício.
As suas mulheres, ocupavam os dias ociosos, reservando uma tarefa para cada dia da semana. As sextas-feiras estavam destinadas aos “seus pobrezinhos”. À hora marcada, pela manhã, chegavam, andrajosos, chapéu na mão, cuidando receber da senhora dona Della Santa o magro contributo para disfarçar uma pobreza chocante. As senhoras sentiam-se confortadas com este gesto, que o senhor padre qualificava de “santo” próprio de senhoras dignas do seu nome.
Os netos de João, nascidos neste caldo, aprenderam a colocar gravata preta todos os dias 25 de Abril, e rapidamente encontraram no dia dos cravos a explicação para a decadência financeira da família. Secretamente invejavam tudo o que os pais tinham vivido e que agora lhe era vedado. Há muito tinham sido vendidas as últimas propriedades, restava-lhes trabalhar para se sustentarem. Entendiam ser uma injustiça, gente da sua posição não deveria trabalhar. Tinham sido os “vermelhos” os culpados de tudo isto. Aliás, todos os Della Santa estavam proibidos de pronunciar a palavra odiosa, sempre que necessário identificar a cor dever-se-ia optar pela expressão “encarnado”. Na verdade, a raiva toldava-lhes o linguajar que à força de tanta ira ia perdendo “rr” e reduzindo o leque de palavras, ganhando uma expressão nasalada. Não conseguiam terminar uma frase sem o inevitável “pecébe?” em jeito de interrogação introspectiva.
Confundia-os ainda o ritual do beijo de cumprimento. Investigavam afincadamente qual a corrente de pensamento mais válida, se aquela que defendia o tradicional beijo duplo ou a mais modernaça de beijo único.
Tratavam-se todos por você. Os mais novos pareciam utilizar um código secreto de corte de cabelo e de roupinhas, parecendo-se todos uns com os outros. Tornava-se, aliás, difícil para quem estivesse fora descortinar as diferenças entre eles.
Eram “conservadores” convictos. Para eles conservador é aquele que deseja conservar no presente o estado que era novo (apesar da provecta idade).
Família defensora dos “valores” perdiam-se na sua identificação e descrição. Chegavam quase sempre à conclusão que “os valores, são os valores e nada mais importa”, ao que os membros da prole aquiesciam em jeitos respeitosos.
Sentiam a falta do jornal “O Dia” único que lhes trazia as notícias e comentários “isentos”.
Os Della Santa reviam-se muito nos Populares ainda que gostassem mais de outro nome - que isto de populares cheira muito a perigo.
Entendiam que faltava um homem com pulso de ferro, alguém capaz de pôr o país nos eixos, alguém, talvez, como João Della Santa, um “santo homem” que todos hoje ali celebravam, recordando as suas histórias de grande vulto, observando, com enlevo, as suas fotografias com o senhor de Santa Comba Dão (levantavam-se, respeitosamente, sempre que era pronunciado o nome do ditador). Sentiam, no fundo, que o país só seria grande quando tivesse gente como os Della Santa à sua frente. Na sua infinita sapiência tal não aconteceu apenas porque uns quantos (poucos, como diziam) influenciaram o “povo” (mesmo os “pobrezinhos” da família - esses ingratos) e “roubaram-lhes” a oportunidade de continuar a grandeza da nação.
Acreditavam que um dia a pátria render-se-ia à evidência “pecébe?”.
Paco tinha fugido à miséria na sua Galiza natal, era um homem desamparado pela vida, contando apenas consigo próprio. Quando chegou a Lisboa, trazia somente a roupa que vestia, um nome em jeito de alcunha e uma imagem da Santa da sua devoção. A mesma que apontava quando lhe perguntavam o nome. Respondia sempre: Paco della (apontando para a imagem), la Santa. Com o tempo ficou Paco Della Santa.
Tinha uma invulgar ambição, inflamada pela inteligência viva e extraordinária capacidade de trabalho que lhe permitiram construir um verdadeiro império empresarial que geria com mestria. Foi acumulando uma assinalável fortuna que investiu em terras, tornando-se um apreciável latifundiário.
Quis que o seu filho tivesse uma posição social que lhe era negada. Quando nasceu João destinou-lhe um futuro radioso. Cedo percebeu que ao petiz lhe sobrava em moleza o que lhe faltava em inteligência. Chegado à idade madura colocou-o na recentemente criada Câmara Corporativa, garantindo-lhe um lugar de procurador. À custa de subornos e financiamentos vários, ia conquistando para João uma vida política dentro da União Nacional. Pagava-lhe os vícios, assegurando-se que estes se mantinham em cuidadoso recato. Tinha dado instruções precisas para que João não tivesse qualquer papel nas empresas.
Paco, o galego, às portas da morte sentia-se realizado. Tinha enriquecido, e criado uma família cujo nome era hoje reconhecido, não só pelas empresas que criara, mas também pela mão deste filho cuja ligação ao Estado Novo subsidiava.
João era um homem menor, pouco dotado de inteligência e tomado por uma indolência crónica, não deixou outras marcas da sua pobre existência do que as forjadas e alimentadas, mais tarde, pelos seus descendentes.
Os seus filhos seguiram-lhe as pisadas delapidando a fortuna que Paco tão diligentemente acumulou. Entendiam que a “sua posição social” exigia um conforto e luxo que não poderiam abdicar e que trabalhar era pouco digno da sua condição. O jogo e as mulheres iam absorvendo o pecúlio familiar. A sua incapacidade era evidente. Acumularam erros primários de gestão que atribuíam aos seus trabalhadores que consideravam “uns inúteis madraços”. No final dos anos 60 as empresas encontravam-se já descapitalizadas e numa precária situação. A grande fortuna era já uma sombra. Tinham começado a vender os terrenos e algumas empresas para alimentar a grande roda do fausto e do vício.
As suas mulheres, ocupavam os dias ociosos, reservando uma tarefa para cada dia da semana. As sextas-feiras estavam destinadas aos “seus pobrezinhos”. À hora marcada, pela manhã, chegavam, andrajosos, chapéu na mão, cuidando receber da senhora dona Della Santa o magro contributo para disfarçar uma pobreza chocante. As senhoras sentiam-se confortadas com este gesto, que o senhor padre qualificava de “santo” próprio de senhoras dignas do seu nome.
Os netos de João, nascidos neste caldo, aprenderam a colocar gravata preta todos os dias 25 de Abril, e rapidamente encontraram no dia dos cravos a explicação para a decadência financeira da família. Secretamente invejavam tudo o que os pais tinham vivido e que agora lhe era vedado. Há muito tinham sido vendidas as últimas propriedades, restava-lhes trabalhar para se sustentarem. Entendiam ser uma injustiça, gente da sua posição não deveria trabalhar. Tinham sido os “vermelhos” os culpados de tudo isto. Aliás, todos os Della Santa estavam proibidos de pronunciar a palavra odiosa, sempre que necessário identificar a cor dever-se-ia optar pela expressão “encarnado”. Na verdade, a raiva toldava-lhes o linguajar que à força de tanta ira ia perdendo “rr” e reduzindo o leque de palavras, ganhando uma expressão nasalada. Não conseguiam terminar uma frase sem o inevitável “pecébe?” em jeito de interrogação introspectiva.
Confundia-os ainda o ritual do beijo de cumprimento. Investigavam afincadamente qual a corrente de pensamento mais válida, se aquela que defendia o tradicional beijo duplo ou a mais modernaça de beijo único.
Tratavam-se todos por você. Os mais novos pareciam utilizar um código secreto de corte de cabelo e de roupinhas, parecendo-se todos uns com os outros. Tornava-se, aliás, difícil para quem estivesse fora descortinar as diferenças entre eles.
Eram “conservadores” convictos. Para eles conservador é aquele que deseja conservar no presente o estado que era novo (apesar da provecta idade).
Família defensora dos “valores” perdiam-se na sua identificação e descrição. Chegavam quase sempre à conclusão que “os valores, são os valores e nada mais importa”, ao que os membros da prole aquiesciam em jeitos respeitosos.
Sentiam a falta do jornal “O Dia” único que lhes trazia as notícias e comentários “isentos”.
Os Della Santa reviam-se muito nos Populares ainda que gostassem mais de outro nome - que isto de populares cheira muito a perigo.
Entendiam que faltava um homem com pulso de ferro, alguém capaz de pôr o país nos eixos, alguém, talvez, como João Della Santa, um “santo homem” que todos hoje ali celebravam, recordando as suas histórias de grande vulto, observando, com enlevo, as suas fotografias com o senhor de Santa Comba Dão (levantavam-se, respeitosamente, sempre que era pronunciado o nome do ditador). Sentiam, no fundo, que o país só seria grande quando tivesse gente como os Della Santa à sua frente. Na sua infinita sapiência tal não aconteceu apenas porque uns quantos (poucos, como diziam) influenciaram o “povo” (mesmo os “pobrezinhos” da família - esses ingratos) e “roubaram-lhes” a oportunidade de continuar a grandeza da nação.
Acreditavam que um dia a pátria render-se-ia à evidência “pecébe?”.
Comentários:
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Luís,
Os Della Santa confirmam a regra de todos os "Della Santinhas" desta vida: a 1ª geração constrói, a 2ª usufrui e a 3ª destrói. É o círculo dos herdeiros incompetentes. "Pecébe"?... ;)
Abraço,
DespenteadaMental
Os Della Santa confirmam a regra de todos os "Della Santinhas" desta vida: a 1ª geração constrói, a 2ª usufrui e a 3ª destrói. É o círculo dos herdeiros incompetentes. "Pecébe"?... ;)
Abraço,
DespenteadaMental
Cansado da vida de vadio decidi abrir uma tasquinha onde quero receber bem uma dúzia de pessoas que respeito. Vou ter o gosto de vê-lo por lá?
É que o sucesso do negócio depende muito de clientes como o Luis!
Cumprimentos
É que o sucesso do negócio depende muito de clientes como o Luis!
Cumprimentos
Está excelente, Luís.
Por acaso, na minha linguagem são os chamados "Vasconcelos y Bourbon", e neste ínicio do século XXI, parece que são mais que as mães.
Para os mais incautos com a actual situação, este texto deveria de ser obrigatório.
Um abraço.
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Por acaso, na minha linguagem são os chamados "Vasconcelos y Bourbon", e neste ínicio do século XXI, parece que são mais que as mães.
Para os mais incautos com a actual situação, este texto deveria de ser obrigatório.
Um abraço.
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