2005-03-09

 

A CULPA FOI DA POLÍTICA

O dia tinha começado mal. Ainda a manhã ia a meio e já Rui registava, na sua contabilidade pessoal de desgraças, diversas contrariedades, próprias de quem se encontra em luta desigual com as forças do destino e outras entidades cósmicas. Logo hoje, caramba, o dia em que teria de apresentar o seu projecto ao Conselho de Administraçáo da empresa.
A culpa do seu deplorável estado era da política, disso não tinha a mais pequena dúvida.
Bem vistas as coisas a quem mais poderia ser assacada a responsabilidade? Enquanto conduzia, num esforço titânico de convivência com as mazelas, recordava a manhã aziaga.
O despertador encarregou-se de abrir as hostilidades. Habituado a acordar lentamente ao som agradável da música, Rui foi arrancado do seu sono profundo pela buzina estridente do rádio/despertador batendo-se de igual para igual com a sirene de um qualquer carro dos bombeiros ali mesmo à cabeceira da cama. O susto foi tal que a sua desorientação o levou ao chão procurando, em vão, no escuro, o redentor botão do silêncio. O coração ainda em pulos desenfreados marcava um ritmo de batimentos muito para lá do recomendável. Procurava já o duche retemperador, quando ligou a telefonia, para garantir a companhia das noticias. A voz timbrada e bem colocada do locutor garantia-lhe que Pedro Santana Lopes estava a juntar os seus haveres em caixinhas de cartão para rumar à praça do municipio de Lisboa. Tomado pela surpresa e ainda não refeito do abrupto despertar, a mão ciosa encaminhou-se para a torneira da água fria, garantindo-lhe uma chuveirada sibérica capaz de acordar o mais desgraçado dos ursos em hibernação, o grito que lançou terá garantido que o prédio e todo o quarteirão tomasse nota da sua presença no mundo.
Parecia já restabelecido quando decidiu acompanhar a noticia da visita a Portugal de Kofi Annan. Rui estava perdido, tentando perceber o enredo da novela. Pois seria Vitorino a primeira escolha ou Guterres? Havia ainda a hipótese de Monteiro. A coisa ganhava contornos capazes de fazer parar o mundo - suspenso da decisão dos lusitanos - justificando a visita do senhor das Nações Unidas, apressando uma decisão, implorando um sim, regateando uma atenção. O DN e o Público garantiam que sim, que o homem viria, pela fresquinha, a Portugal. O Ministério dos Negócios Estrangeiros não sabia. A ONU confirmava a existência de um senhor com o nome de Kofi Annan, constava que Secretário Geral, agora a sua deslocação à Europa é que não. Gaita! terá gritado Rui elegantemente, ao sentir um arrepio, não já de frio, não já de vergonha pelo que ouvia, mas de dôr - uma dôr fisica. Hoje já sabe, dolorosamente, que prestar demasiada atenção a estórias rocambolescas com uma lâmina na mão, é uma mistura explosiva. Soubesse-o umas horas antes e ter-se-ia livrado do sulco triplo que a gilette mach 3 tinha deixado no seu rosto.
Era já um homem com evidentes mazelas aquele que assomava à cozinha na esperança do pequeno-almoço. Ligada a televisão, nem se apercebeu das notícias até fixar a sua atenção nas palavras do novo ministro das Finanças. O senhor garantia que os impostos estavam aqui estavam a aumentar, olarila! Por momentos, Rui perdeu-se em cálculos de datas. Quando chegou à conclusão que não era possivel que a voz que ouviu fosse a do titular da pasta das Finanças (consta que só tomará posse no dia 12) já a mão tinha acompanhado perigosamente o pão para dentro da torradeira em contacto directo com o seu incandescente interior. Mais um grito, mais vernáculo, não necessáriamente pela oportunidade das palavras do neófito e indigitado Ministro, mas pelos dois dedos que exibiam uma coloração arrepiantemente rubra.
Tinha já esgotado a sua extensa lista de palavras do calão, quando finalmente conseguiu sair de casa razoavelmente atrasado, exibindo dois belos pensos rápidos na mão direita, um lanho de dimensão estimável na face, uma gravata com uma nódoa antiga que não descobriu (mas que concentrará a atenção da Administração quando daqui a pouco iniciar a sua apresentação).
Vai já ao volante, tentando recuperar o tempo. Ainda não sabe, mas vai sentado sobre os restos duma torrada com doce que o seu filho mais novo tinha abandonado no assento do carro no dia anterior. O efeito que deixará nas suas calças creme só o conhecerá quando um colega mais caridoso lhe explicar, no final do dia, que a razão para a súbita hilaridade lá no escritório não era a última crónica do Luís Delgado ou do Raúl Vaz, mas a bela nódoa em forma de borboleta vermelha nos fundos das suas calças...

Comentários:
Meu caro Luís, como estamos apocalípticos.
De tudo o que aconteceu a esta personagem, só era imprevisível a nódoa da torrada final... para tudo o resto já o "Rui" devia ter anticorpos. Um abraço.
 
Bela roupagem, esta em que envolveu o urso recém-acordado da hibernação!:)
 
Nuvens negras... parece que vem chuva!
 
Magnífica parábola que, com riso, prende a atenção até ao fim. Provavelmente, o Rui apenas acordou mal-disposto, após uma noite de pesadelo. E ainda não se apercebeu que, apesar de tudo, não tem razões (válidas) para se lamentar...!
 
Magnífica parábola que, com riso, prende a atenção até ao fim. Provavelmente, o Rui apenas acordou mal-disposto, após uma noite de pesadelo. E ainda não se apercebeu que, apesar de tudo, não tem razões (válidas) para se lamentar...!
 
Muito sofre, o "Rui"!!!
Mas, caro Luis Sequeira, não é nada aconselhável que ouça notícias enquanto faz a barba! Pelo menos nos tempos mais próximos.
 
Excelente texto sobre os "Rui" deste Portugal.
Um abraço e bom fim de semana.
 
Coitado do Rui!
Graças a Deus não preciso de gilettes mach 3 ! Excelente o texto!
 
Coitado do Rui!
Graças a Deus não preciso de gilettes mach 3 ! Excelente o texto!
 
Coitado do Rui!
Graças a Deus não preciso de gilettes mach 3 ! Excelente o texto!
 
Foi caso para o 'Rui' dizer que há dias, de manhã, em que um homem, à tarde, não pode sair à noite.
Bela ficção! Horrorosa realidade ;)
Abraço.
 
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