2005-04-17

 

CONHECIMENTO DO INFERNO (V)

Tinha passado a manhã olhando as estantes com os seus livros. Detivera-se na leitura daqueles tomos com as ideias que em tempos o haviam conquistado. Quase a medo releu os seus próprios comentários escritos em estilo deslumbrado. Parecia-lhe tão estranho rever-se naquela caligrafia.
Agarrado às notas vindas de um tempo outro, foi descobrindo os contornos exactos da sua ilusão. Dizia então conhecer as regras da Economia. Não tinha dúvidas, sabia que o Estado era uma criação demoníaca e inutil, divertia-se com os jogos de palavras. Sentia tão seguras as suas convicções e tão fortes as suas certezas que gostava de discutir a privatização da sociedade, assim mesmo, sem excepções. A pobreza, defendia, não existia como tal, apenas a demonstração da preguiça, da ausência de vontade. Naqueles dias gabava-se de não ter, jamais, conhecido um argumento capaz de alterar as suas ideias.
O sucesso profissional alimentava a redoma que tinha desenhado para si, numa abstracção de tudo à sua volta.
Sabia hoje que tinha de guardar a fera selvagem em que a sua memória se tinha transformado. Todas aquelas recordações sacudiam-no violentamente, traziam a frieza da lâmina, secavam-no por dentro.
Afastava com firmeza aquela torrente de recordações, não podia deixar que o desalento se instalasse. Tinha bem presente as indicações do médico, a bomba-relógio que o consumia podia facilmente descontrolar-se sem o apertado domínio de uma alma desperta e combativa.
Aquela era uma guerra que não queria, nem podia perder.
Restava-lhe a esperança de encontrar uma solução para o enigma em que se tinha transformado a sua vida, numa espécie de equação com tantas variáveis e incógnitas que subitamente não aceita uma fórmula resolvente.
E os cálculos, as contas, bem que o consumiam. Conhece agora os limites da reduzida receita familiar, apertado na subtracção do custo brutal dos seus tratamentos, agora que não pode mais trabalhar e não por preguiça, e não por falta de vontade.
Pensava em tudo isto no exacto momento em que se prepara para vestir a sua camisola branca com as palavras de ordem que ensaiara na véspera com os colegas: “não aos abonos de miséria”. Está já a ser revistado pelo agente de autoridade, responsável zeloso pela segurança do hemiciclo. Ali participará na manifestação silenciosa. Ali estará durante os trabalhos vespertinos da Assembleia.
Será tomado pela vontade de gritar a todos que conhece os meses de 10 dias, que sabe bem a dor de ter um prato de esparguete para almoço e jantar de toda a familia. Gritar que conhece casos desesperados, gritar que existem 2 milhões como ele, gritar que há 300.000 pessoas com fome, gritar que não quer viver num país que desconhece o significado da palavra solidariedade. Dizer a todos como é ténue a linha que separa o orgulho da vergonha. Fazer ver como se pode abrir tão facilmente um alçapão debaixo dos pés.
Acabará por silenciar a vontade de partilhar a sua miséria, acabará por impedir-se de contar o seu inferno. Sabe bem que já ganhou invisibilidade, sabe bem que a sua é já uma história impossivel, sabe bem que traz agarrada à pele a vida que ninguém quer ver.
Sabe bem, já foi assim.

Comentários:
E quantos outros este homem arrastou para esse inferno?!
 
Há algo de redentor no seu sofrimento que lhe permitiu, pelo menos na recta final, descobrir um mundo de miséria com o qual agora se sente irmanado. A vivência da doença, que lhe impôs limites, paradoxalmente libertou-o das fronteiras impostas pela cegueira humana em que antes vivia.
 
Luís, é já um lugar comum dizer que gostei muito da prosa. Gostei mesmo muito.

Desculpa, mas tens lá um "presente" no meu "cantinho". Um abraço e desenrasca-te.
 
Muito bom, este texto. Infelizmente, conhecemos demasiados casos similares...
 
Para se escrever assim, digo-lhe eu, tem que ser com a alma toda! Apetece-me sempre erguer e bater palmas pela escrita.
 
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