2005-04-26

 

E DEPOIS DO ADEUS (I)

Quase todas as noites acorda ao som daquela memória estridente da chapa a bater na mesa. Dir-se-ia que a tortura maior não foi ter estado em pé horas infinitas na estátua, não foi ter estado preso tantas vezes sem razão, não foi, sequer, ter estado acordado dias a fio. A tortura maior ficou-lhe gravada indelevelmente, aparece-lhe em forma de pesadelo, encarrega-se de o fazer recordar os tempos menores de um país dobrado, em respeitinho abjecto.
E logo ele que repetia tantas vezes que a sua política era o trabalho, logo ele que afirmava convictamente que essas coisas da ditadura, essas coisas das perseguições, seriam invenções da malta do reviralho - houvesse decoro, dedicação ao trabalho e à nação e certamente ninguém seria incomodado.
Ainda hoje desconhece quem teria sido o denunciador e porquê. Não esquece aquele dia, seriam 6 horas da manhã (mais tarde compreenderia, dolorosamente, que esta era a hora oficial para as “visitas”), ainda estremunhado abriu a porta à violência, ao descontrolo. Acordou mais tarde já no calabouço, já na mesinha com a luz forte apontada aos olhos, a voz que gritava, que o acusava de graves conspirações, que o envolvia em atentados à segurança do Estado, que garantia que os “comunas” naquela sala não saíam vivos. Julgando estar a viver um pesadelo, ainda explicou, ainda esclareceu. Pouco importava, cedo percebeu que ali, estava para sofrer. Tinha o destino traçado por uma qualquer demente razão. Estava marcado para experimentar o sabor amargo da ditadura.
Compreendeu então o logro em que tinha vivido, em que muitos teimavam viver. Assim, num ápice, pela denúncia inventada de um qualquer esbirro, toda a sua vida tinha sido virada do avesso.
Compreendeu que não podia mais correr à margem, não podia mais fechar os olhos, logo agora que lhos abriram, que o atiraram para o outro lado.
Ainda lhe custa lembrar como penou, como foi difícil explicar o lodo, a escuridão. Ainda lhe custa lembrar os outros virando a cara, não querendo ver, calando, aceitando, acatando. Ainda hoje lhe custa lembrar as vezes sem conta que regressou àquele edifício, as vezes sem conta do martirio, da violência.
Estava longe e escondido no dia maior, só soube das novas dois dias depois. Não se lembra de maior felicidade, subitamente a liberdade, subitamente uma janela aberta, a brisa do mar, sentida a plenos pulmões por um país diferente.
Todos os anos celebra o dia da verdade.
Secretamente, arrepia-se sempre que recorda o lado mais obscuro, mais triste, mais ignorante do país que tanto ama. Secretamente, arrepia-se sempre que se interroga por onde andará essa gente, essa tendência para aceitar, para não questionar, para não contestar.
Secretamente, deseja que o país, o seu país, seja uma nação outra.
Ali vai, orgulhoso, cravo na lapela, desfilando anonimamente pela Avenida da Liberdade.

Comentários:
Nestas linhas, foi condensado, e ilustrado, com sabedoria e talento, anos de opressão e de perseguição de um povo que apenas aspirava a ser livre. Registo, contudo, fazendo-a também minha, esta frase que ilustra, tão dolorosamente, a actualidade: "Secretamente, arrepia-se sempre que se interroga por onde andará essa gente, essa tendência para aceitar, para não questionar, para não contestar."
 
Caro Luis Sequeira
Este seu texto é a homenagem que eu gostaria de ter feito a tanto cidadão anónimo que sofreu na carne e na alma os horrores de uma ditadura que muitos outros, mais jovens, não conseguem sequer imaginar e, por isso, já se demarcam de tudo o que tenha a ver com luta, liberdade e sonho.
Bem haja, caro amigo.
 
Mais uma vez, escreveste um post memorável.
 
¡Qué emoción!
Uno de los días más felices de mi vida.
A revolução dos cravos.
Sabía que algo se movía en el pais amigo.
Había almorzado unos días antes con Letria,Jose Afonso y alguién más que no recuerdo.
Un abrazo e un beijo para las personas que sufrieron la dictadura. Victoria Díaz Cabanela- A Coruña
 
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