2005-05-26

 

MAIS UMA VIAGEM

A viagem, qualquer viagem, traz sempre associada essa vontade indomada de partida, espécie de fuga controlada, remetendo-nos para o nómada que todos carregamos, mais ou menos, disfarçado.
A imagem assim descrita, não sendo nova, tão-pouco inspirada, era bem capaz de ser um belo começo para um conto, para um devaneio de escrita relatando extraordinárias demandas do desconhecido ou estórias fantásticas contadas de um fôlego, prendendo a atenção. Procure-se na literatura, na grande literatura, e encontrar-se-ão esses pedaços de vida em andamento, descritos pela mão dos mestres. Aqui, neste simples amontoar de palavras, não há o engenho para tal.
Deixe-se, pois, esse desejo de relato, deixe-se essa vontade de conto mais entusiasmado, mais rebuscado – estivesse aqui o critico e estaria já afiando as garras, gemendo: Pretensioso, queria o menino dizer – e a verdade é que talvez tivesse razão, veja-se bem o tempo, a atenção que se está ocupando com justificações, com lamentos, para não seguir por outro caminho com mais fôlego, outra viagem dir-se-ia com ironia.
Fiquemos pelo simples relato, coisa rápida contada em três penadas.
Observe-se o comboio novo, aquele que tomaremos para a partida.
O mesmo comboio, ainda parado, deixará entrar os passageiros, deixá-los-á descobrir no interior a ausência de mudança, deixá-los-á perceber que a novidade tão celebrada é apenas uma forma outra de recauchutagem.
A partida que se anuncia, o movimento da máquina. O passageiro, sentado, apreciando a paisagem, flectindo as pernas na busca do descanso, esticando o jornal de braços abertos como que acolhendo as noticias num abraço desejado, e a leitura que desperta na súbita confusão da noticia, o jornal que se traz mais perto dos olhos já não em emocionadas ternuras com o papel, mas na estupefacção do informe. Estava confundido procurando saber se aquele nome era o do antigo jogador de futebol se do edil, e pouco importava que ambos estavam longe, muito longe, de algum dia sonharem sentar-se na cadeira lá no topo da petrolífera. Poderia lá ser, pensava, encontrando na especulação jornalística ou até mesmo na óbvia loucura, a justificação para aquela demencial informação. Ora, aí está: era essa afinal a razão - que não tinha sido para isso que acreditou, não tinha sido para isso que julgara ter chegado o fim destes conluios canalhas -, pensava mais descansado, tentando enganar-se a si próprio, exibindo uma experiência de anos na arte da auto-ilusão.
E nisto o revisor que chega, abrindo a porta da carruagem em jeitos de proprietário, mirando os passageiros com o olhar confiante dos chefes, ajeitando os óculos, enchendo o peito de ar, gritando com palavras arrastadas e marcadas pela forte pronúncia beirã a sua frase de eleição: “quem se mete connosco, leva!”.
Só agora, o passageiro se apercebe do parceiro de viagem ali sentado ao lado, abrindo a carteira, procurando o cartão, hesitando na cor, escolhendo-o por fim, arrumando todos os outros (tantos, admirava-se), e o revisor, mais terno, vendo a corzinha do seu momento ali exibida, piscando o olho, convidando o parceiro de viagem para a carruagem da frente, prometendo maior conforto, maior segurança.
E o relato que vai já contaminado pelo progressivo desalento do passageiro, que vai já longo e arrastado, é melhor que fique por aqui, que a viagem assim contada é capaz de se tornar (outra vez) penosa.

Comentários:
Ver o Fernandinho Gomes capachinho montado naquele poleiro inspira-me, de facto, uma enorme vontade de viajar. "Viajar" que, neste contexto, é um eufemismo de emigrar. Abraço.
 
É realmente demais para qualquer cidadão português ter que aturar estes Governos que nomeiam e desnomeiam a seu bel prazer, unicamente em função de cada um veste.
É uma vergonha!
O "revisor" agora remete-se a um silêncio prudente.
Um abraço.
 
Aqui anda mesmo mão de mestre!
Mas, de facto, a viagem está a tornar-se penosa.
 
Parábola notável!
 
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