2005-05-12

 

A MEMÓRIA, OS DIAS E AS NOTICIAS

Assim, de repende, recordou-se do título de O’Neil, talvez ainda embalado pela imagem de partida e viagem que convoca, talvez até sem razão nenhuma. A verdade é que a ideia lhe andava a bailar desde a manhã: “sigamos o cherne”. Mal dava conta, estava a contas com o título. O mais estranho é que hoje tinha duas frases no cardápio, num despique de atenção e tempo de antena.
Achava estranho conviver com a absoluta ausência de controlo sobre a sua memória, sobre o seu cérebro, aparentemente com agenda própria, que volta não volta, lhe projectava no inconsciente consciente estas coisas desgarradas sem nexo aparente.
Valeria bem tentar perceber por que razão trazia hoje também a piscar-lhe a frase “as coisas estão pretas”. Mas que coisas, diacho? E para quem afinal estariam as coisas pretas?
Para o que haveria um tipo de estar guardado: perder-se em jogos mentais em desafios colocados por si próprio. Pensava já estar em presença de um arriscado e precoce processo de degenerescência mental, coisa difícil de lidar para quem faz da massa cinzenta a única ferramenta útil.
Agarrando-se aos jornais para leituras soltas que esconjurassem esses pensamentos, deteve-se na análise dos casos do dia. Quase instintivamente deu por si a pensar que as coisas estavam pretas para aquela rapaziada. Ainda entusiasmado sentiu despertar em si (aqui entraria o narrador, franzindo o nariz, comentando que estas frases, estas coisas do “despertar em si” e tal, cheira mesmo a textos de muito baixa categoria. E a verdade é que o comentário cairia muito mal, e o personagem - homem de conhecidos maus figados - era bem capaz de se sentir ofendido, era bem capaz de perguntar se o narrador percebe de cheiros de palavras, e o personagem já com voz de ameaça: “cuidadinho ó menino” em aviso pedagógico, e já recuperando a respiração: “ai a minha vida!”). Sigamos em frente, sigamos o cherne, que a estória que aqui estava a ser contada não era para ser estragada com pequenas tricas, com tiques de “prima dona” de narradores e personagens que mal agradecidos, são convidados para abrilhantar uma prosa sem assunto e estragam tudo, podiam bem fingir umas simpatias, umas urbanidades e vai na volta engalfinham-se desta maneira, estão aqui estão a dizer que se soubessem o que sabem hoje não tinham assinado o convite para estar aqui em cavaqueira com o dono (que termo bonito: o dono. Assim mesmo: a posse claramente enunciada) deste blogue. Capazes de dizer que assinaram o convite com boa-fé, capazes de insinuar que não sabiam de nada, que quiseram apenas ser simpáticos ao aceitar o convite. E com tudo isto ainda era bem capaz de aparecer por aí o antigo primeiro a dizer que ele então é que não sabia de nada, nada mesmo, façam lá o favor de ir bater a outra porta que ele não sabe de nada (eramos nós até capazes de dizer que não sabe nada de nada).
E o personagem já a saír, ainda fulo, ainda a pensar que as coisas estão mesmo pretas, ainda a pensar que vale a pena seguir a onda, ver o que isto nos há-de trazer.

Comentários:
Olha, olha... o processo de criação vai amadurecendo. O autor até já faz (e que bem feito) um diálogo / monólogo entre ele e a personagem, perante o olhar do leitor. Já há confiança para expor as dúvidas no tratamento da personagem...
Meu caro, começamos a ter escritor. Vai treinando no blogue, e começa a aventura-te em narrativas de maior fôlego. Um abraço.
 
Caro LS, fiquei a apreciar a versatilidade da sua escrita, que em certos momentos tem inspiração neo-realista e noutros, como é o caso, um certo aroma de surrealismo (a citação do O'Neil veio mesmo a propósito!).

Quantas vezes o objecto criado não se vira contra o criador? Não admira, assim, que alguns dos seus personagens acabem por recriminar o autor!

Mas independentemente dos maus fígados de alguns, a verdade é que as coisas estão mesmo pretas para certos cidadãos que exerceram influências onde não deviam...

Um abraço.
 
Siga-se, ou não, o cherne é forçoso que as coisas estejam pretas para essa rapaziada e para qualquer outra que entenda seguir esses caminhos!
Mas...não queria estar na pele do narrador.
 
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