2005-06-03
NO FIM DO MUNDO (I)
Façamos uma pausa, deixemos por momentos as ocupações, os afazeres. Olhemos para o fim do mundo, aqui mesmo à nossa vista, à nossa beira.
Tomemos pois um rumo novo, na visita às mesmas ruas, na observação do invisível à nossa volta.
Ali vai António, traz o olhar fixado num ponto inexistente, caminha com passo inseguro, lento, como que vergado pelo peso impossivel que acartasse aos ombros. Naquela hora tão matinal cruza-se com uma pequena multidão apressada, desesperada pela ditadura das horas céleres, obrigatórias. As horas de António são outras, intermináveis, absurdas. Tem a sua rotina ditada por esta caminhada, longa jornada para tão curta distância.
Tivéssemos esse dom mágico de darmos voz ao pensamento de António, tivéssemos essa arte cinematográfica de colocar as suas cogitações no centro da acção, talvez o ouvissemos matutar no dia em que perdeu o emprego, talvez ouvissemos o som resignado de quem desistiu, talvez já não conseguissemos ouvir nada mais que o silêncio.
E a oportunidade de escuta não se prolongaria, que os pensamentos a terem voz perdê-la-iam agora mesmo, agora que já está no café esconso do fim da rua, do fim do mundo.
Não estará só, encontrará os seus semelhantes, formarão uma espécie de zombies anestesiados enganando o tempo, enganando-se, fingindo jogar às cartas, as mesmas que trazem agarradas como se uma extensão das próprias mãos, sem repararem que o naipe se encontra viciado, há muito que jogam somente com duques. Não o saberão que a fantasia já não chega a tanto. Estão ali sentados ensaiando gestos maquinais, já nem uma palavra, acumulando na mesa uma espécie de colecção doentia de garrafas de vidro âmbar onde veio embalada a refeição do dia, às prestações.
Tomemos pois um rumo novo, na visita às mesmas ruas, na observação do invisível à nossa volta.
Ali vai António, traz o olhar fixado num ponto inexistente, caminha com passo inseguro, lento, como que vergado pelo peso impossivel que acartasse aos ombros. Naquela hora tão matinal cruza-se com uma pequena multidão apressada, desesperada pela ditadura das horas céleres, obrigatórias. As horas de António são outras, intermináveis, absurdas. Tem a sua rotina ditada por esta caminhada, longa jornada para tão curta distância.
Tivéssemos esse dom mágico de darmos voz ao pensamento de António, tivéssemos essa arte cinematográfica de colocar as suas cogitações no centro da acção, talvez o ouvissemos matutar no dia em que perdeu o emprego, talvez ouvissemos o som resignado de quem desistiu, talvez já não conseguissemos ouvir nada mais que o silêncio.
E a oportunidade de escuta não se prolongaria, que os pensamentos a terem voz perdê-la-iam agora mesmo, agora que já está no café esconso do fim da rua, do fim do mundo.
Não estará só, encontrará os seus semelhantes, formarão uma espécie de zombies anestesiados enganando o tempo, enganando-se, fingindo jogar às cartas, as mesmas que trazem agarradas como se uma extensão das próprias mãos, sem repararem que o naipe se encontra viciado, há muito que jogam somente com duques. Não o saberão que a fantasia já não chega a tanto. Estão ali sentados ensaiando gestos maquinais, já nem uma palavra, acumulando na mesa uma espécie de colecção doentia de garrafas de vidro âmbar onde veio embalada a refeição do dia, às prestações.
As horas que passam, o mundo que parou, há muito, naquele tugúrio, espécie de refúgio. António, absorto, numa inexistência, num vazio absoluto.
Deixa todos os dias a agonia entregue à familia. Na fuga diária, vira as costas ao sofrimento dos seus. Já não imagina sequer o pesadelo de Maria, ignora como consegue ela alimentar os filhos. António desistiu, baixou os braços, não sabe que estranhos caminhos foi ela obrigada a percorrer.
Valeria a pena conhecer melhor esta mulher a quem foi entregue um fardo que não consegue suportar. Valeria a pena, não fosse o tempo da pausa ter esgotado, não fosse termos de fechar a janela, não fosse demais a vista para o fim do mundo.
Valeria a pena conhecer melhor esta mulher a quem foi entregue um fardo que não consegue suportar. Valeria a pena, não fosse o tempo da pausa ter esgotado, não fosse termos de fechar a janela, não fosse demais a vista para o fim do mundo.
Comentários:
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A situação em Portugal começa a ganhar contornos extremamente dramáticos e o pior é que não dislumbra uma solução.
Não sei como vamos aguentar estes próximos 4 anos.
Um abraço e bom fim de semana.
Não sei como vamos aguentar estes próximos 4 anos.
Um abraço e bom fim de semana.
Como dói olhar por esta janela e ver um país com tantos antónios. Como dói pensar que todos somos antónios. Um grande abraço.
É triste ver que este texto acaba por descrever uma realidade que só deveria existir na ficção.
Nunca serão demasiadas as vozes que denunciem estas situações, infelizmente cada vez mais actuais. E eu que pensava que não voltaria a ser (outra vez) possível!
Nunca serão demasiadas as vozes que denunciem estas situações, infelizmente cada vez mais actuais. E eu que pensava que não voltaria a ser (outra vez) possível!
Reparo que alguns de nós em jeito de histórias vamos falando dos Antónios, das Marias deste pais. pergunto-me como conseguem viver. É preciso escrever sobre, denunciar, falar alto, gritar. Há tanta fome e miséria neste pais.
Viva Luís,
Cheguei aqui na mão de Só Palpites.
Parabéns pela escrita detalhada de um estado total de indiferença e de rendição que está neste momento o Povo Portugues a passar. Clinicamente -e hoje-, está "Ele" depressivo o quanto basta.
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Cheguei aqui na mão de Só Palpites.
Parabéns pela escrita detalhada de um estado total de indiferença e de rendição que está neste momento o Povo Portugues a passar. Clinicamente -e hoje-, está "Ele" depressivo o quanto basta.
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