2005-08-10

 

ESCRITA MAIOR


António Lobo Antunes comemorou 25 anos de escrita em 2004. Mais do que homenagens de circunstância, vale bem a pena revisitar, com frequência, a sua escrita maior.
Actualmente, o autor reconhece que está mais calmo e tolerante com jornalistas menos esclarecidos. Admito que seja um exercício difícil. Recordo uma entrevista publicada há alguns anos no "Público", não retive o nome da entrevistadora, apenas lembro que tentou ser engraçadinha (talvez uma dessas meninas e meninos muito modernos cujo alcance literário se esgota nas embalagens dos perfumes). Enfim, a menina quis fazer uma graça, arrancando a sessão com uma pergunta solta e muito fresca (cito de memória) "diria que o Lobo Antunes é o Herman José da literatura, não lhe parece?". Está bom de vêr que a resposta, assim como toda a entrevista, foi de arrasar, tornando-se a dado passo um "diálogo" sem nexo, em que a "menina" se perdeu numa aventura bem mais complexa do que esperava.
Se recordo este episódio é por que, em certo sentido, acabou por ser um exemplo (ainda que involuntário) de "non sense" com alguns momentos hilariantes.
Aliás, encontram-se nos livros de Lobo Antunes alguns exemplos do mais sofisticado humor escrito em lingua portuguesa. Não resisto a deixar aqui, com a devida vénia, apenas dois pequenos exemplos retirados daquele que considero, ainda, um dos seus mais brilhantes romances: Fado Alexandrino.

"O incomparável equilibrista sueco Charles pinchou aos saltinhos no escuro, apertado num baby-grow amarelo, reluzente de lantejoulas e vidrilhos. Era baixo, moreno, de patilhas, tipicamente nórdico de Marvila, e quando a certa altura se enganou escapou-se-lhe da ramagem preta do bigode um impetuoso Foda-se de viking. A bela Janete, minúscula e rabuda, de longos cabelos pontuados de palhetas a encarapinharem-se em desordem nas espáduas, rodopiava em torno do artista o qual se multiplicava em pinos lamentáveis, sublinhados pela orquestra de compassos trágicos de tragédia".

(...) "À Mademe Simone seguiu-se o genial ilusionista búlgaro Mikael Mikaelov, que despejava jarros de leite em cones de papel de jornal que se transformavam na bandeira portuguesa e solicitava a colaboração do público com o sotaque do Porto típico dos Eslavos, as irmãs Smith, da Califórnia, numa gentil cedência do casino de Nova Iorque, em exercícios de forças combinadas (uma delas, de resto, era a lindíssima janete, a acompanhante do equilibrista sueco de há pouco) desfazendo-se em cambalhotas e mortais, Marina Madragoa, a mais recente descoberta do fado, acompanhada do seu conjunto privativo (o torcionário do piano e a lombriga do saxofone, que mudaram de casaco para a circunstãncia) e após alguns minutos de nula expectativa e absoluto alheamento (preparai-vos, damas e cavalheiros, para o número sem par que se vos reserva), a campeã do strip-tease Melissa, inveja das mais célebres estrelas do cinema italiano, e singularmente parecida com a deusa do Fado, com a diferença de se manter em silêncio ao passo que a cantora, descomposta pela inspiração lírica, urrava pelo gregório ao microfone, como as sereias dos bombeiros num terramoto de nádegas."

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