2005-08-23

 

O ESTADO A QUE ISTO CHEGOU

Pudéssemos ser capazes de voar, pudéssemos observar do alto o país, o nosso, talvez tivéssemos a imagem enganadora de nuvens escuras que ameaçam (prometem?) a abençoada chuva. Ali estaríamos vogando no ar, tomando por Juno a nuvem, afinal o rasto negro do fogo profano, do miserável retrato de um povo desprotegido.
Não valerá sequer a pena tentar o sonho aéreo, vista daqui a realidade entra-nos, dolorosamente, pelos olhos dentro.
Ano após ano, livro branco após livro branco, relatório após relatório, a história repete-se. Não se aprende, não se corrige, não se evolui.
Não é sequer necessário ouvir as esdrúxulas explicações de governantes atarantados que balbuciam “ignições” e alarvidades avulsas. Não é sequer necessário escutar os repetidos e pungentes apelos "à unidade nacional". Basta ver os nossos dignitários olhando o céu na procura da explicação maior. Basta ver os nossos dignitários convocando a eterna resignação vincada pelo desagravo, forma outra de encolher os ombros: “é a vida”.
É, de facto, a vida, a nossa. Uma vida que se percebe entregue à sua sorte.
Um país colado a cuspo, ao mínimo abanão, à mínima ocorrência "fora do normal", soçobra. Hoje os incêndios, amanhã as cheias, talvez depois uma ponte, uma estrada, o diabo.
Uma nação desgraçadamente impotente, incapaz de se defender do previsível inesperado, dedicando-se à caótica coreografia da incompetência, especializando-se na explicação do inexplicável.
Não é já um jogo de argumentação partidária, de gostos, de cores, apenas a dolorosa observação da tragédia da nossa existência colectiva.
O Estado, lamentavelmente, chegou ao estado a que isto chegou.

Comentários:
O Estado chegou ao estado de indigência.
Estou desolado e com uma raiva...!
 
E não havemos nós, caro Luís, de ser o país mais infeliz da União Europeia (a 15). Quem sabe se não somos a 25!
 
Sem dúvida que somos o País do "É a vida", o Fado, o destino.
Este povo merecia melhor sorte.
 
Caro Luis,

Deixo aqui um artigo do José Gomes Ferreira a prepósito do que escreveu.

José Eduardo

A indústria dos incêndios
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A evidência salta aos olhos: o país está a arder porque alguém quer que ele arda. Ou melhor, porque muita gente quer que ele arda. Há uma verdadeira indústria dos incêndios em Portugal. Há muita gente a beneficiar, directa ou indirectamente, da terra queimada.

José Gomes Ferreira
Sub-director de Informação



Oficialmente, continua a correr a versão de que não há motivações económicas para a maioria dos incêndios. Oficialmente continua a ser dito que as ocorrências se devem a negligência ou ao simples prazer de ver o fogo. A maioria dos incendiários seriam pessoas mentalmente diminuídas.

Mas a tragédia não acontece por acaso. Vejamos:

1 - Porque é que o combate aéreo aos incêndios em Portugal é TOTALMENTE concessionado a empresas privadas, ao contrário do que acontece noutros países europeus da orla mediterrânica?

Porque é que os testemunhos populares sobre o início de incêndios em várias frentes imediatamente após a passagem de aeronaves continuam sem investigação após tantos anos de ocorrências?

Porque é que o Estado tem 700 milhões de euros para comprar dois submarinos e não tem metade dessa verba para comprar uma dúzia de aviões Cannadair?

Porque é que há pilotos da Força Aérea formados para combater incêndios e que passam o Verão desocupados nos quartéis?

Porque é que as Forças Armadas encomendaram novos helicópteros sem estarem adaptados ao combate a incêndios? Pode o país dar-se a esse luxo?

2 - A maior parte da madeira usada pelas celuloses para produzir pasta de papel pode ser utilizada após a passagem do fogo sem grandes perdas de qualidade. No entanto, os madeireiros pagam um terço do valor aos produtores florestais. Quem ganha com o negócio? Há poucas semanas foi detido mais um madeireiro intermediário na Zona Centro, por suspeita de fogo posto. Estranhamente, as autoridades continuam a dizer que não há motivações económicas nos incêndios...

3 - Se as autoridades não conhecem casos, muitos jornalistas deste país, sobretudo os que se especializaram na área do ambiente, podem indicar terrenos onde se registaram incêndios há poucos anos e que já estão urbanizados ou em vias de o ser, contra o que diz a lei.

4 - À redacção da SIC e de outros órgãos de informação chegaram cartas e telefonemas anónimos do seguinte teor: "enquanto houver reservas de caça associativa e turística em Portugal, o país vai continuar a arder". Uma clara vingança de quem não quer pagar para caçar nestes espaços e pretende o regresso ao regime livre.

5 - Infelizmente, no Norte e Centro do país ainda continua a haver incêndios provocados para que nas primeiras chuvas os rebentos da vegetação sejam mais tenros e atractivos para os rebanhos. Os comandantes de bombeiros destas zonas conhecem bem esta realidade.

Há cerca de um ano e meio, o então ministro da Agricultura quis fazer um acordo com as direcções das três televisões generalistas em Portugal, no sentido de ser evitada a transmissão de muitas imagens de incêndios durante o Verão. O argumento era que, quanto mais fogo viam no ecrã, mais os incendiários se sentiam motivados a praticar o crime...

Participei nessa reunião. Claro que o acordo não foi aceite, mas pessoalmente senti-me indignado. Como era possível que houvesse tantos cidadãos deste país a perder o rendimento da floresta - e até as habitações - e o poder político estivesse preocupado apenas com um aspecto perfeitamente marginal?

Estranhamente, voltamos a ser confrontados com sugestões de responsáveis da administração pública no sentido de se evitar a exibição de imagens de todos os incêndios que assolam o país.

Há uma indústria dos incêndios em Portugal, cujos agentes não obedecem a uma organização comum mas têm o mesmo objectivo - destruir floresta porque beneficiam com este tipo de crime.

Estranhamente, o Estado não faz o que poderia e deveria fazer:

1 - Assumir directamente o combate aéreo aos incêndios o mais rapidamente possível. Comprar os meios, suspendendo, se necessário, outros contratos de aquisição de equipamento militar.

2 - Distribuir as forças militares pela floresta, durante todo o Verão, em acções de vigilância permanente. (Pelo contrário, o que tem acontecido são acções pontuais de vigilância e combate às chamas).

3 - Alterar a moldura penal dos crimes de fogo posto, agravando substancialmente as penas, e investigar e punir efectivamente os infractores

4 - Proibir rigorosamente todas as construções em zona ardida durante os anos previstos na lei.

5 - Incentivar a limpeza de matas, promovendo o valor dos resíduos, mato e lenha, criando centrais térmicas adaptadas ao uso deste tipo de combustível.

6 - E, é claro, continuar a apoiar as corporações de bombeiros por todos os meios.

Com uma noção clara das causas da tragédia e com medidas simples mas eficazes, será possível acreditar que dentro de 20 anos a paisagem portuguesa ainda não será igual à do Norte de África. Se tudo continuar como está, as semelhanças físicas com Marrocos serão inevitáveis a breve prazo.

José Gomes Ferreira
 
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