2005-08-20

 

O PAÍS "PRODUTIVO"

Aqui fica o texto da minha coluna desta semana no "Jornal de Negócios", publicada na passada quinta-feira:

José possuía uma perspectiva muito própria da sua profissão. Para ele o taxista deve ter opinião sobre quase todos os assuntos, estando obrigado a partilhar o seu saber com os clientes ocasionais. Achava os políticos “uns vígaros”, não passava um dia sem que se entusiasmasse na descrição do que considerava serem as verdades sobre “eles”, agitando o jornal na coreografia da ira que lhe deixava a face ruborizada. Passava o lenço pela testa cuidando limpar os sinais da sua cólera quando, terminada a corrida, disfarçava uma pressa de urgências tamanhas, não fosse alguém pedir uma factura; “a gente não pode declarar tudo, derivado à crise”, desabafava junto de António que lhe garantia ser esse o procedimento correcto para evitar “andar a engordar pançudos inúteis”.
António aproveitava a interminável baixa por doença para manter um esgotante ritmo de trabalho em proveitosos biscates. Era, à sua maneira, uma estrela lá no bairro desde que prestou um depoimento (em directo) a uma jornalista da TV, afirmando, sem papas na língua, que “isto está como está por causa dessa gajada que está no poleiro”, abria uma excepção para o presidente da Junta de Freguesia (uma boa alma) que há anos fez o favor de mover influências colocando-o na empresa do Lopes, dono da “fábrica” – como todos lhe chamavam.
A “fábrica” era uma pequena indústria de confecções que se arrastava com dificuldades, “já podia ter fechado se fosse tolo e pagasse os impostos para essa cambada gastar” afiançava Lopes. Aliás, não disfarçava a estima pelo “guarda-livros” homem de mil artes, que sabia tecer os “paralelos” que ambos liam na perfeição - forma de garantir um estimável prejuízo anual. Sabia que o mal do país era ter poucos empresários (como ele) tal como repetiu quando visitou o dr. Saraiva, que há anos lhe tratava dos engulhos legais em que teima envolver-se por força dos seus “maus fígados”.
O advogado tinha-lhe assegurado que a sentença desfavorável não era preocupante: “mete-se um recurso, e outro ainda se for preciso, que isto anda tão atulhado que está aqui está prescrito, vai ver”. Quem sabe, sabe, pensou o Lopes que de tão aliviado lhe deu para discutir política com o causídico, o outro, homem de leituras e muita sapiência, garantiu-lhe que o problema fundamental “reside na crise da Justiça, repare bem nesta miséria dos tempos infinitos que a nossa Justiça demora, um inferno”, enquanto acompanhava o Lopes à porta, já atrasado para o almoço com Bernardo - “um notabilíssimo gestor”.
Bernardo tinha-se habituado muito cedo a ser tratado por “sôtor”, forma respeitosa de garantir “uma saudável distância”. Pouco importava que não tivesse concluído o primeiro ano do curso, aprendeu precocemente que a grande arte de viver é feita de outros saberes. Sabia que precisava conhecer e conviver com os poderosos. Enquanto hesitava entre aventais e fés fervorosas, conseguiu, ardilosamente, um lugar no partido onde reforçou cumplicidades e amizades que o protegiam a troco de sinecuras para os seus.
Compôs o nome, acrescentando uma consoante ao apelido, que assim ganhava uma confortável distinção, e foi construindo uma história, convincente, de antepassados gloriosos e fortunas desfeitas por infortúnios. Encontrava na afectação de gestos e ademanes o testemunho do “berço” que a sua imaginação tinha criado. Geria com inegável destreza os seus silêncios, evitava qualquer decisão utilizando enigmáticas expressões recheadas de termos técnicos anglo-saxónicos, ouvidos nos seminários que frequentava. Apreciava o estatuto que lhe conferiam os cargos que ia conquistando numa inexorável ascensão profissional, acumulando passagens meteóricas pela administração de empresas de onde saía para ocupar cargo mais destacado, numa empresa de maior dimensão.
Estão todos “a banhos” aproveitando as merecidas férias, aguardando, ansiosos, o regresso do campeonato nacional de futebol.

Comentários:
óptima crónica que nos mostra bem o estado do nosso país e como tudo parece que está a banhos.
venho cá sempre para ler as tuas óptimas palavras. :)
 
Se ainda fossem para nadadores salvadores, mas nem isso.
Parabéns pelo preciso retrato que fazes... é que é tão real que nem é caricatura.
 
Excelente crónica!
 
E infelizmente esse país produtivo existe. E você e eu vivemos nele.
 
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