2005-11-11

 
Abnegado - 1º Aniversário - Textos do Baú

16 Março 2005


Há muito que Filipe tinha deixado de contar os dias, sequer as semanas, da sua desgraçada existência. Limitava-se a conferir as condições atmosféricas, numa observação rápida e mecânica para garantir a escolha da melhor opção para a noite. Era a única rotina que tinha adquirido, imposta pelo ritmo da rua e a sua desenfreada e miserável luta. Os melhores lugares para o sono estavam ocupados pelos líderes, o que no mundo em que sobrevive, vale por dizer os mais fortes. Apesar dos muitos anos que leva de rua, nunca foi capaz de garantir um território, um espaço a que a sua imaginação pudesse chamar seu, tinha (sempre teve) uma compleição frágil, própria de quem garante a custo o mínimo de subsistência, própria de quem se dedica a um jogo do gato e do rato com a fome.
Nos dias em que consegue conquistar, ou descobrir, um local menos desprotegido para descansar, garante uma presença na sopa dos pobres.
Ali estava numa solidão que o acompanhava desde o berço - como se a expressão se pudesse aqui aplicar, estranha ironia para quem nunca conheceu sequer o que será um berço.
Filipe tem a história de quem não tem história. Não conheceu a mãe que se perdeu no nevoeiro da vida, nunca lhe viu o rosto, nunca lhe soube o nome. Em boa verdade, mãe nunca teve por certo, não pode ter esse nome alguém que abandona o fruto do seu ventre no exacto momento em que vê a luz. Parecia que logo ali lhe traçavam um destino, lhe pintavam a negro as cores do livro aberto que uma vida que nasce sempre deve ser. Valeu a Filipe a D. Hermenegilda que lhe sentiu a luta pela vida. Pegou no menino abandonado e tomou-o como seu.
Foi maior a generosidade que a sua capacidade. A idade já pesava, a viuvez e a ausência de outro rendimento impunham-lhe horários prolongados na limpeza dos escritórios na grande cidade, no vai-e-vem contínuo entre a lata do bairro e os neons da urbe. Bem queria dedicar algum tempo ao petiz, faltava-lhe quem a auxiliasse, as vizinhas dos tempos que já lá vão, já se foram todas elas, que a vida, aquela vida, não dava tréguas.
Filipe foi crescendo por sua conta no bairro esconso, afastado de tudo, onde a policia não entrava. Naquele sub mundo as regras eram claras, a sobrevivência o único objectivo.
Não conheceu a escola, a outra – a escola da infelicidade - tomava-lhe os dias, fez todas as cadeiras desse doentio espaço do conhecimento do inferno. Deu por si envolvido em pequenos delitos, que lhe garantiram a intimidade com os calabouços. Perdido, perdeu-se ainda mais, afundou-se no poço escuro, sem fundo, dos pós, das seringas, do flagelo.
Acumulou doenças várias, crónicas, que fez por esquecer. Vai conhecendo os hospitais à força dos desfalecimentos que o dominam com frequência.
Não soube da morte de D. Hermenegilda, heroica vencedora numa corrida contra o tempo, vencida pela miséria aos 63 anos - que se diriam 90.
Filipe passa pelos dias arrastando-se pela cidade, cosido às paredes, convivendo com a sua invisibilidade, dolorosamente real quando roga por uma esmola, por uma ajuda.
Olha à sua volta e é o vazio que lhe entra pelos olhos, o inferno, o seu inferno, único companheiro fiel de uma vida perdida.

Comentários:
Parabéns!
 
Parabéns, Luís. ;)
 
Muitos parabéns por este anito te textos e opiniões. Foi sempre um prazer cá vir ler o que tinhas para nos dizeres, sempre com frontalidade.~
Um ano nestas andanças...é mesmo muito tempo!
Um grande abraço e... até mais logo.
 
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