2005-11-14

 
Abnegado - 1º Aniversário - Textos do Baú

4 Abril 2005


Todos os dias ocupava a mesma mesa, junto à grande janela do café. Chegava sempre a meio da manhã, pedia a meia de leite e uma torrada. Em gestos diligentes, habituais, colocava-se numa posição confortável. Durante as próximas horas concentrava a sua atenção fixando a rua, abstraindo-se de tudo. Parecia conferir o filme da sua vida através do vidro. Não se lhe conhecia o nome, tão pouco outros dados relevantes, era apenas o cliente que escolhia o silêncio e o seu recolhimento como companheiros, se lhe ouviam a voz era tão-só para o quase mecânico registo do seu pedido.
Não sabiam que contava já 72 anos, “não parece” dir-lhe-iam, fosse ele dado a convívios de café, “está muito bem conservado para a idade” repetiriam em conversas vazias, prolongando o tempo subitamente sobrante.
Sabia que a sua vida valeria bem uma descrição, justificaria um relato interminável, talvez até garantisse espanto reverente, perante tão fantásticas narrativas. A verdade é que ele próprio estava mais preocupado em esquecê-la, bem vistas as coisas, o caminho que percorreu deixou-o ali mesmo, sozinho, sentado na mesa de um café, fazendo por prolongar uma refeição que será a única do dia, todos os dias.
Por vezes, tentava imaginar o que fariam os seus dois filhos, quem seriam, teriam agora quê, 40 anos o mais velho, 38 o mais novo? Fazia mentalmente as contas, confirmava a exactidão do raciocínio. Pudesse retomar a marcha da sua vida naquele dia em que decidiu fugir, pudesse regressar a casa pegar-lhes ao colo como se nada fosse, pudesse ser um pai, não um cobarde. Tarde demais, pensava sempre. Tomou o caminho errado, disso hoje não tem dúvidas. Apanhou a boleia inebriante de uma vida aparentemente fácil, deixou-se engolir pelo vórtice do momento, ficou agarrado para sempre a um vazio.
Ali estava, absorto, fixando o vidro da montra pelo lado de dentro. Retomava, o fio da memória. Conferia a angústia pesada da culpa que carregava.
Julgava então ter descoberto a existência ideal, livre de compromissos, sem responsabilidades, tudo lhe era permitido e devido, pensava. Daqueles anos de folia recorda os biscates de ocasião, uma demonstração do seu génio pintando apressadamente um quadro, garantia de mais alguns meses de exaltação, voltas pela grande Europa, trabalhos de meses pagamentos de dias, siga a euforia que julgava eterna. As imagens desses dias foram ganhando os contornos da sua perdição. Jogou tudo nessa aposta, jogou a sua vida, perdeu.
Mais logo retomará o caminho, cada vez mais longo, cada vez mais pesado, em direcção ao quarto que ocupa naquele velho edifício abandonado. Partilha o espaço em ruínas com outros companheiros de infortúnio, vidas que não quer conhecer, bem lhe chega o seu fardo.
Mais logo chegará ao quarto, retomará o pensamento que o assalta todas as noites, angustiar-se-á com a ideia de adoecer, de perder a mobilidade, de ficar preso àquele espaço que só a noite disfarça.
Mais logo adormecerá, para sempre.

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