2005-11-28

 

VISTA PARA O FIM DO MUNDO

Façamos uma pausa, deixemos por momentos as ocupações, os afazeres. Olhemos para o fim do mundo, aqui mesmo à nossa vista, à nossa beira.
Tomemos um rumo novo na visita às mesmas ruas, na observação do invisível que nos rodeia.
Ali vai António, traz o olhar fixado num ponto inexistente, caminha com passo inseguro, lento, como que vergado pelo peso impossível que acartasse aos ombros. Cruza-se com uma pequena multidão apressada, desesperada pela ditadura das horas céleres, obrigatórias. As horas de António são outras, intermináveis, absurdas. Tem a sua rotina ditada por esta caminhada, longa jornada para tão curta distância.
Tivéssemos o dom mágico de darmos voz ao pensamento, tivéssemos essa arte cinematográfica de colocar as suas cogitações no centro da acção, talvez o ouvíssemos matutar no dia em que perdeu o emprego, talvez ouvíssemos o som resignado de quem desistiu, talvez já não conseguíssemos ouvir nada mais que o silêncio.
E a oportunidade de escuta não se prolongaria, que os pensamentos a terem voz perdê-la-iam agora mesmo, agora que já está no café esconso do fim da rua, do fim do mundo.
Não estará só, encontrará os seus semelhantes, formarão uma espécie de zombies anestesiados enganando o tempo, enganando-se, fingindo jogar às cartas, as mesmas que trazem agarradas como se uma extensão das próprias mãos, sem repararem que o naipe se encontra viciado: há muito que jogam somente com duques. Não o saberão, que a fantasia já não chega a tanto.
Estarão ali sentados ensaiando gestos maquinais, já nem uma palavra, acumulando na mesa uma espécie de colecção doentia de garrafas onde veio embalada a refeição do dia, liquida, às prestações.
As horas que passam, o mundo que parou, há muito, naquele tugúrio, espécie de refúgio. António, absorto, numa inexistência, num vazio absoluto.
Deixa todos os dias a agonia entregue à família. Na fuga diária, vira as costas ao sofrimento dos seus. António desistiu, baixou os braços. Já não imagina sequer o pesadelo de Maria, ignora como consegue ela alimentar os filhos, não sabe que estranhos caminhos foi ela obrigada a percorrer.
Valeria a pena conhecer melhor esta mulher a quem foi entregue um fardo que não consegue suportar. Valeria a pena, não fora o tempo da pausa ter esgotado, não fora termos de fechar a janela, não fora a insuportável violência desta vista para o fim do mundo.

Comentários:
Perturbadora, esta vista! E no entanto o nosso fim, no Mundo, não pode ter nada a ver com este fim do mundo.
E imperioso que deixemos de olhar o umbigo!!!
 
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