2005-12-04

 

ESTÓRIAS DO QUOTIDIANO (IV)

Todos os dias à hora do jantar, cumprindo um estranho ritual, começava a vozearia, a altercação. Naquele terceiro andar esquerdo parecia habitar um casal em eterna discórdia.
Menos mau dado que a horas aceitáveis, condescendia o administrador do condomínio, na inutilidade dos avisos, na incapacidade de uma alteração do comportamento tão incivilizado.
No inicio o que intrigou mais a pequena comunidade do prédio não foi tanto a singularidade regular da revolta, mas a curiosa reclusão da parceira. Organizaram-se piquetes de observação, na tentativa de perscrutar todas as entradas e saídas do terceiro esquerdo, uma curiosidade quase mórbida dominou o prédio na expectativa de conhecer a contendora, aquela que todos os dias à hora habitual encontrava razões para contestar, para discutir com tanta veemência. E sempre a mesma decepção, nem sinal da mulher da voz tão familiar, tão pontual.
Talvez que estivesse acamada, doente, reclusa na sua própria casa.
O marido (estimava-se que o marido) era já conhecido pelo homem misterioso, vizinho desconhecido que não ouvia os pedidos de silêncio, não trocava palavra, não respondia aos acenos, não devolvia um cumprimento.
Encerrado no seu doentio casulo de silêncio, o homem misterioso tanto tempo sem um grito, sem um som, ouvindo, passivo, a diária avalancha de insultos.
Os outros que o olhavam, respeitosos, na certeza de uma alma sofrida, complacente. Talvez um homem santo, que ali mesmo no prédio carregasse uma cruz, obedecendo a um destino invulgar.
E o homem misterioso que chegando a casa, tirava o casaco, e em gestos rotineiros dava inicio à sua fantasia: ligava o leitor de cassetes com o som no máximo, reproduzindo uma outra vez a gravação da voz feminina, gritando, acusando-o.
Todos os dias, à hora do jantar, não era mais o homem só, naquele momento diário erguia-se do anonimato, sabendo-se, orgulhoso, o centro das atenções.

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