2006-01-24

 

ESTÓRIAS DO QUOTIDIANO (VII)

Lera no jornal o aviso cientifico: em pouco mais de 24 horas chegará o dia mais infeliz do ano. Parecia-lhe estranho que a infelicidade chegasse assim com hora marcada, resultado de uma complexa fórmula matemática.
Quase sem dar conta, perdeu-se em divagações, imaginava a infelicidade a chegar, cansada da viagem, instalando-se com vagares proprietários, declarando “é hoje o meu dia, faça-se como eu quiser”. E a infelicidade ali, disparando ordens com voz rude, tingindo os dias de negro. Via-a exercendo as suas artes, esvaziando de luz os seres à sua volta, numa cruel exibição de poder.
Alguém mais avisado terá parado a catadupa desgovernada de palavras, “alto e para o baile” que estamos aqui estamos a resvalar para um textozinho de cordel.
Os olhares que se concentraram na personagem, a personagem que confrontado com este naco de aridez criativa, com este pedaço de má escrita, se desculpava com o narrador, uma espécie de sádico que lhe atribuía quase sem excepção estes fundos de estória, estas gongóricas paisagens narrativas.
Pudesse a personagem ao menos ter uma oportunidade, um dia (não mais do que um dia) em que fosse actor maior, contando na primeira pessoa uma aventura ou até um conto contado com conta e medida.
Pudesse escapar do jugo, pudesse dizer ao narrador o mal que escreve, pudesse explicar-lhe que se envergonha de ser protagonista destas estórias de polichinelo, e já agora rebelar-se contra o anonimato, coisa vergonhosa essa de nunca lhe ter sido atribuído um nome, uma alcunha que fosse.
Tivesse o narrador ocasião e sempre diria que o culpado de tudo era o autor, sempre escondido, sempre incapaz de se afirmar, manobrando na sombra as suas criações, os seus assalariados.
Estava ali montado um sarilho, uma algazarra, promessa de edificantes cenas de faca e alguidar. Coisas tecidas pela falta de talento, já se vê.
Deixemo-los distraídos na altercação, deixemo-los distraídos sem que se tenham apercebido da infelicidade que, pontual, havia chegado a tempo de organizar mais esta triste exibição das misérias humanas.

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