2006-02-01

 

A ALMA DO NEGÓCIO (I)*

A dona Joaquina parecia ter desenvolvido um apurado mecanismo para avaliar as capacidades profissionais dos médicos: tudo se resumia a uma simples questão de quantidade. Segura do seu sistema, dividia os clínicos entre bons e maus consoante a generosidade na prescrição. Nem poderia ser de outra forma, dado que a receita, exibindo uma respeitável lista de fármacos, gritava preto no branco (cientificamente, dir-se-ia): ponham os olhinhos nesta senhora, vejam que a “pontada nas costas”, as “dores nas cruzes” que só Deus sabe, não é coisa inventada. Na farmácia, depositava a receita como se o peso das suas enfermidades se achasse reunido naquele pedacinho de papel. Ignorava que as cápsulas coloridas, guardadas com desvelo, não eram mais do que comprimidos de açúcar, ou placebos se lhe quisermos atribuir a sua definição técnica.
Os placebos começaram a ser utilizados nos ensaios clínicos controlados. Nesta metodologia cientifica pretende-se estudar os efeitos de um determinado medicamento administrando-o a um grupo de indivíduos e comparando-o com os resultados alcançados no grupo de controlo a quem foi ministrado um placebo (julgado inócuo), analisando-se os resultados em função da diferença verificada nos dois grupos. Todavia, com frequência, os placebos demonstraram um surpreendente desempenho, algumas vezes superior ao medicamento activo. Diversas outras pesquisas sobre os placebos foram sendo desenvolvidas, observando-se a sua eficácia nas mais diversas doenças. No fundo, o efeito dos placebos não é mais do que a aparente melhoria da saúde que não resulta de um tratamento específico, mas sim da crença e expectativas do doente.
No mercado as coisas não são diferentes: as expectativas desempenham também um papel maior. Dos diversos exemplos que ocorreriam para o comprovar sublinhe-se o clássico estudo de Levin e Gaeth onde se observou que a mesma carne rotulada com a menção “75% livre de gorduras”, foi indicada como tendo melhor sabor do que quando etiquetada com a expressão “contém 25% de gordura”. Mais recentemente, três investigadores norte-americanos procuraram estudar o efeito placebo de algumas acções de marketing. A pesquisa, publicada na última edição da revista “Journal of Marketing Research”, demonstrou que a fixação do preço pode alterar a eficácia dos produtos. Em três experiências, os autores provaram que os consumidores conscientes de que pagaram um preço mais baixo pelo mesmo produto (no caso, uma bebida energética apresentada como aumentando a acuidade mental) registaram piores resultados na construção de “puzzles” do que os consumidores que compraram o mesmo produto ao seu preço normal. Concluindo, desta maneira, que o preço pode exercer uma influência não percebida nas expectativas acerca de um produto; que essas expectativas podem ter impacto no desempenho do produto; e que as mesmas expectativas podem ser induzidas através de outro tipo de informação sobre a qualidade do bem, como sejam anúncios publicitários. Assim, as expectativas relativamente à relação preço e qualidade podem influenciar os consumidores exactamente como um efeito placebo. O estudo abre uma nova e interessante perspectiva na forma como os consumidores reagem às acções de marketing.
Alheia a todas estas investigações académicas, ignorando o seu papel neste jogo do consumo, a dona Joaquina vai juntando uma vistosa colecção de sobras de placebos, que julga medicamentos, cuidadosamente reunidos numa estante branca que exibe às visitas da casa. Não disfarçando o orgulho, guarda para o fim a apresentação daquele recanto especial, abrindo lentamente a porta, estendendo os braços e anunciando com voz baixa como se cuidando um respeito reverencial: “eis a minha farmácia”.

*coluna no Jornal de Negócios

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