2006-02-03

 

ESTÓRIAS DO QUOTIDIANO (VIII)

Acaso acreditássemos na premonição, talvez déssemos algum crédito à angústia que agora mesmo começa a sentir aquele que desperta na grande cidade. Vemo-lo afectando uma expressão indefinida como se antecipando um indizível desconforto.
Ei-lo que sobe o estore, concluindo a escuridão do quarto, acolhendo a súbita iluminação matinal.
Que estranha ironia se esconde nos pequenos gestos, nos pequenos nadas; que absurda metáfora nos ocorre no justo momento em que observamos a invasão da luz na manhã daquele que em breve cairá na mais violenta escuridão.
Não o sabe ainda, pois que cumpre todas as etapas iniciais da sua rotina diária, registando somente um pequeno atraso – coisa pouca, não mais do que meia hora – o suficiente para que todos no prédio partissem apressados para mais uma jornada, oferecendo-lhe a condição de último a sair.
E a pressa, senhores, a pressa que levava quando entrou no elevador, olhava o relógio na ânsia das horas, dos minutos. A princípio nem deu fé do solavanco, só quando estranhou o silêncio percebeu estar fechado, encerrado, no velho ascensor. Ainda ensaiou um pedido de ajuda, premiu o botão do alarme, um grito, na expectativa de um amparo. E nada. E ele ali sozinho, indefeso, incapaz de lidar com a claustrofobia. E o espaço a tornar-se mais pequeno, os suores frios, o cérebro num turbilhão, o pânico que chegava, instalando-se comodamente, cumprindo a sua tarefa demencial.
“Um belo dia de sol” garantiam os que na ausência de conversa desconversavam; “essa é que essa, um dia luminoso”, respondiam os outros na verve meteorológica dos argutos. Repetiam-se os diálogos pobres, ricos de subentendidos, talvez uma forma de mudar o relato, esquecer aquele que acordara angustiado, aquele que conhecera há pouco a noite definitiva.

Comentários:
pode acontecer...já tirei alguns das grades dos elevadores.
 
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